Tensões Índia-Paquistão Sob Olhar da ONU: Guterres Oferece “Boas Oficinas” para Evitar Confronto

Militar da Força de Segurança de Fronteiras verifica passaportes de cidadãos paquistaneses na fronteira de Attari-Wagah, após a revogação de vistos pela Índia, em 27 de abril de 2025.
Militar da Força de Segurança de Fronteiras verifica passaportes de cidadãos paquistaneses no ponto de passagem de Attari-Wagah, após a Índia revogar os vistos de cidadãos paquistaneses, em 27 de abril de 2025. REUTERS/Anushree Fadnavis.

Na esteira de uma escalada de atritos na região da Caxemira e de incidentes transfronteiriços, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, intensificou seus contatos diplomáticos nesta terça-feira (29 de abril de 2025), falando separadamente com o primeiro-ministro paquistanês, Muhammad Shehbaz Sharif, e com o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, segundo declaração oficial de porta-voz da organização.

Contexto das Tensões

Desde o fim de março de 2025, observadores internacionais registram um aumento de trocas de tiros e ataques aéreos na Linha de Controle (LoC) que divide a Caxemira administrada pela Índia da porção sob controle paquistanês. Relatórios de ONGs de direitos humanos apontam para pelo menos 45 civis mortos e centenas de deslocados internos em ambas as margens do vale desde então.

  • Incidente mais recente: em 26 de abril, um posto de vigilância indiano foi atingido por morteiros, resultando em três soldados feridos, segundo comunicado do Exército Indiano.
  • Retaliação: Islamabad acusou Nova Délhi de violar o cessar-fogo de 2003, abrindo fogo de artilharia contra vilarejos em Azad Caxemira.

Esse ciclo de ação e reação reacende antigas rivalidades que, historicamente, já levaram a três guerras abertas (1947, 1965 e 1971) e a crises nucleares em 1999 e 2001.

Intervenção da ONU: “Boas Oficinas” para Desescalada

Em sua conversa com Shehbaz Sharif, Guterres expressou “profunda preocupação” com o aumento das hostilidades e ofereceu as “Boas Oficinas” do Secretário-Geral – mecanismo de mediação confidencial previsto na Carta da ONU – para facilitar o diálogo entre os dois governos.

À Subrahmanyam Jaishankar, o Secretário-Geral reiterou a necessidade de evitar confrontos que poderiam gerar “consequências trágicas não apenas para a região, mas para a estabilidade global” e colocou à disposição da Índia o apoio técnico e político da ONU em iniciativas de confiança mútua.

Importância das “Boas Oficinas”

As “Boas Oficinas” consistem em:

  1. Canal de diálogo sigiloso – Permite que as partes exponham demandas e receios sem pressão pública.
  2. Envio de enviados especiais – Diplomatas de alto nível podem atuar como facilitadores.
  3. Apoio de agências da ONU – Aspectos humanitários e de monitoramento de fronteira podem ser supervisionados por organismos como UNMOG (Missão de Observação Militar).

Essa abordagem já foi empregada com sucesso em crises como o acordo nuclear iraniano (2015) e no processo de paz colombiana (2016).

Possíveis Consequências de um Conflito Prolongado

Uma guerra prolongada entre Índia e Paquistão — ambos Estados nucleares — teria repercussões profundas em várias dimensões:

  • Econômica:
  • Mercados globais sofreriam forte volatilidade no preço de commodities, especialmente petróleo e gás, devido ao aumento do risco geopolítico no Sul da Ásia.
  • Investimento estrangeiro direto (IED) cairia na região, à medida que empresas reavaliassem riscos de operar perto de um possível teatro de guerra nuclear.
  • Social:
  • Crise de refugiados: milhões poderiam atravessar fronteiras para buscar segurança, gerando pressão sobre países vizinhos e sobre o próprio Paquistão e Índia.
    Colapso de serviços públicos em áreas de conflito, com impacto em saúde, educação e infraestrutura básica.
  • Geopolítica
  • Realinhamento de alianças: potências como China, EUA e Rússia teriam de escolher lados ou mediar, alterando dinâmicas de blocos como QUAD e SCO (Organização de Cooperação de Xangai).
  • Risco de proliferação nuclear: outros países da região poderiam buscar armas nucleares como “dissuasão”, aumentando o risco global.
  • Direitos Humanos:
  • A Anistia Internacional e a Human Rights Watch(Observatório de Direitos Humanos) já alertaram para riscos de violações em massa, incluindo crimes de guerra e limpeza étnica em zonas contestadas, caso o conflito se expanda sem controle.

Soluções e Exemplos de Sucesso em Processos de Mediação Anteriores

Para entender o que poderia funcionar na mediação Índia-Paquistão, vale observar casos na Ásia:

ConflitoMediação / ProcessoResultadoLições
Acordo Nuclear Iraniano (2015)Boas Oficinas da ONU e P5+1Redução parcial de sanções e restrições ao programa nuclearImportância de garantias mútuas e revisões periódicas
Processo de Paz no Sri Lanka (2002–06)Noruega como mediadorCeasefire e negociações diretas, embora temporáriasNecessidade de acompanhamento local contínuo
Negociações Nepal-Índia (1950–51)Tratado de Paz e AmizadeEstabeleceu relações diplomáticas e comerciaisValor de acordos formais bem detalhados

Em cada caso, elementos-chave foram:

  1. Mediador neutro com credibilidade regional (Noruega no Sri Lanka; ONU no Irã).
  2. Mecanismos de verificação claros (inspeções internacionais).
  3. Incentivos econômicos atrelados ao cumprimento de fases do acordo.

Essas lições podem ser adaptadas para a crise da Caxemira, combinando mediação sigilosa com incentivos políticos e humanitários graduais.

Reações Regionais e Internacionais

  • Paquistão: declarou-se “receptivo” à mediação da ONU, segundo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores em Islamabad. Autoridades paquistanesas cobram, porém, maior pressão internacional sobre a Índia para respeitar o direito internacional humanitário.
  • Índia: mantém discurso de auto-defesa e afirma que quaisquer negociações dependem da cessação prévia de ataques transfronteiriços por Islamabad.
  • EUA e UE: instaram ambas as partes ao recato e ao uso de canais diplomáticos, endossando o papel da ONU como mediadora imparcial.

Cenário Humanitário

ONGs locais e internacionais alertam para:

  • Deslocados internos: cerca de 10 000 pessoas forçadas a sair de suas casas em abril, segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR).
  • Acesso a serviços: cortes de eletricidade e telecomunicações em zonas de conflito dificultam o fornecimento de ajuda médica e suprimentos básicos.

A ONU considera urgente um corredor humanitário monitorado por suas agências para atender civis afetados, medida que também pode servir de primeiro passo para reconstruir confiança entre Nova Délhi e Islamabad.

Desafios à Mediação

  • Desconfiança histórica: décadas de confrontos e incidentes de espionagem minam a credibilidade de qualquer processo.
  • Pressão política interna: nacionalistas em ambos os países veem concessões como fraqueza.
  • Dimensão nuclear: o arsenal de ambos impõe um risco sistêmico, elevando o custo de um possível erro de cálculo.

Conclusão

A iniciativa de António Guterres para oferecer as “Boas Oficinas” da ONU surge num momento crítico em que a escalada militar pode facilmente sair do controle e desencadear uma crise de proporções continentais. A eficácia dessa mediação dependerá da disposição de Índia e Paquistão em priorizar o diálogo sigiloso sobre a retórica pública e em aceitar supervisão internacional, ainda que limitada, nos setores humanitário e de segurança.

Enquanto isso, a comunidade internacional, sobretudo potências e blocos regionais, desempenha papel-chave ao pressionar por contenção e ao oferecer incentivos políticos e econômicos para manter abertas as linhas de comunicação. O próximo passo prático seria o estabelecimento de um mecanismo coordenado de verificação de cessar-fogo, possivelmente liderado pela UNMOG, acompanhado de um plano de assistência humanitária imediato para as populações mais vulneráveis.

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