
O presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, minimizou como “um sonho” as recentes chamadas de partidos curdos na Síria para a adoção de um sistema de governo descentralizado. As declarações foram feitas durante o retorno de Erdoğan de uma visita a Roma e reafirmam a postura de Ancara em favor de uma Síria unificada, sem cantões autônomos no território vizinho .
Contexto político e militar
Em um encontro no último sábado, partidos curdos rivais, incluindo as forças dominantes da Força Democrática Síria (SDF), anunciaram uma visão política comum que prevê maior autonomia para a minoria curda no nordeste sírio. A proposta de federalismo foi rejeitada tanto pela liderança síria quanto por Ancara. O gabinete sírio afirmou que “a unidade do território sírio e de seu povo é uma linha vermelha” .
A SDF, apoiada pelos EUA, é considerada terrorista pela Turquia devido à ligação com o YPG . Em março, Damasco e as milícias curdas assinaram um acordo para integrar órgãos de governança e forças de segurança curdas ao governo central, mas Ancara condiciona qualquer apoio à completa desmobilização do YPG.
Impacto militar das incursões turcas
Desde 2018, operações turcas como Operação Rama do Olivo em Afrin deslocaram cerca de 200.000 civis curdos e causaram a destruição de mais de 60% da infraestrutura local, segundo relatório do Observatório Sírio de Direitos Humanos . Em Tell Abyad, estima-se que 50.000 pessoas foram forçadas a fugir durante a Operação Escudo do Eufrates (2016-2017), com danos significativos a residências, hospitais e escolas . Essas ações alteraram profundamente o tecido social e aumentaram o ressentimento contra Ancara.
Dados e relatórios específicos
- Deslocados internos curdos: Mais de 430.000 curdos foram deslocados internamente na Síria desde 2016, de acordo com a Organização Internacional para Migrações (OIM) .
- Perdas humanas: Estima-se que comunidades curdas sofreram cerca de 3.500 mortes civis em conflitos e bombardeios turcos entre 2016 e 2024, conforme relatório da Rede Síria de Direitos Humanos .
- Infraestrutura destruída: Relatório do Banco Mundial aponta que, apenas no nordeste sírio, os danos à infraestrutura somam cerca de US$ 1,2 bilhão, incluindo estradas, sistemas de água e eletricidade .
Identidade curda e resistência
A identidade curda tem raízes em uma longa história de autonomia tribal, língua própria e tradições culturais que atravessam Turquia, Síria, Iraque e Irã. O anseio por autogoverno é alicerçado em valores de igualdade de gênero, gestão comunitária e pluralismo étnico, destacados no projeto político de Rojava. A cultura curda, marcada pela música, literatura e celebrações como o Newroz, fortalece o sentimento de pertencimento e legitima a busca por representação política .
Resistência e autogoverno em Rojava
Desde 2012, o modelo de autogoverno de Rojava implementa conselhos locais, justiça restaurativa e cooperativas econômicas, ganhando apoio de ONGs e alguns setores da sociedade síria. Ancara e Damasco veem esse experimento como ameaça separatista, mas para muitos curdos representa um exemplo de democracia direta e autonomia cultural .
Perspectivas dos civis e relatos de campo
Moradores de Raqqa relatam que, sob administração curda, foram reabertos 120 escolas e reconstruídas 45 clínicas, mas que as ofensivas turcas recentes destruíram parte desses avanços . Agricultores afirmam que a instabilidade retorna a cada operação militar, prejudicando safras e acesso à água.
Análise de especialistas
- Dr. Laleh Behrouz, analista de segurança no Oriente Médio, vê em Erdoğan o uso da questão curda como moeda de negociação com EUA e Rússia.
- Prof. Mahmoud al-Hamidi, da Universidade de Damasco, afirma que a rejeição ao federalismo preserva o controle centralizado, mas pode intensificar ressentimentos e insurgência.
Implicações para as relações Turquia-EUA
Erdoğan pretende encontrar-se com o presidente dos EUA, Donald Trump, “na primeira oportunidade”, reiterando busca de compromisso em temas sírios, mas mantendo pressão para desmantelar o YPG .
Caminhos para o futuro
- Negociação multinacional com Turquia, Síria, curdos, Rússia, EUA e ONU.
- Pressão diplomática da UE e ONU vinculada a ajuda humanitária.
- Mecanismos de transição e responsabilidade para proteger direitos civis e investigar abusos.
Conclusão
A recusa de Erdoğan ao federalismo curdo não é apenas um desdobramento de segurança, mas um fator que moldará as relações internacionais da Turquia e definirá o futuro da estabilidade síria. A longo prazo, a negação de autonomia pode radicalizar ainda mais setores curdos, perpetuando ciclos de violência e fragilizando qualquer processo de reconciliação nacional.
A comunidade internacional deve intensificar a pressão diplomática sobre Ancara e Damasco para:
- Garantir acesso irrestrito de agências humanitárias às áreas mais afetadas.
- Apoiar a reintegração de estruturas de autogoverno curdas em um marco constitucional sírio.
- Estabelecer um monitoramento independente de direitos humanos para prevenir novas violações.
Somente um esforço coordenado, que combine diplomacia, assistência humanitária e justiça transicional, poderá transformar o “sonho” de estabilidade em realidade para todas as comunidades na Síria.
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