Nacionalistas russos pressionam pela continuação da guerra enquanto Kremlin avalia proposta de paz

Fortificações antitanque em forma de 'dentes de dragão' e arame farpado na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, maio de 2025.
Fortificações antitanque conhecidas como 'dentes de dragão' e arame farpado protegem a região de Zaporizhzhia, Ucrânia, em 10 de maio de 2025. REUTERS/Alina Smutko

Enquanto o presidente Vladimir Putin ensaia conversas de paz para encerrar o conflito na Ucrânia, um grupo de nacionalistas russos — autodenominados “Z-patriots” — empreende uma campanha para manter a guerra em curso. Esse núcleo de influenciadores, jornalistas de guerra e figuras políticas radicais se apresenta como porta-vozes de uma ala beligerante que exige avanços territoriais ambiciosos, mesmo quando o Kremlin sinaliza disposição para negociações.

A ala belicista e seu papel

Os Z-patriots ganharam notoriedade ao surgirem como comentaristas endossados informalmente pelo Ministério da Defesa russo, com público expressivo em plataformas como o Telegram. Têm seguidores que ultrapassam meio milhão, alcançando militares, empresários e parte da sociedade civil. Entre as vozes mais destacadas estão:

  • Pavel Gubarev, ativista em Donetsk, que afirmou ser inadmissível “congelar” o conflito e alertou contra a rendição de armas e territórios.
  • Konstantin Malofeyev, oligarca e ideólogo ultranacionalista, que clama pela “libertação completa” das regiões históricas de Novorossiya e Malorossiya.
  • Dmitry Medvedev, antigo presidente e hoje vice–chefe do Conselho de Segurança, que apesar de próximo a Putin, teme que uma trégua possa dar “respiro” ao Exército ucraniano.

Esses atores não atuam em conjunto — alguns se reportam ao Estado-Maior, outros mantêm laços com agências de inteligência ou unidades paramilitares como o grupo Wagner. Ainda assim, todos convergem em insistir numa postura intransigente.

Conflito interno: controle versus rua

Fontes próximas ao Kremlin relatam que, embora os Z-patriots sejam tolerados, há limites bem definidos para suas intervenções públicas. Segundo especialistas, Putin e seus serviços de inteligência monitoram de perto esses nacionalistas para evitar que o discurso beligerante ultrapasse as metas oficiais de guerra.

“Eles são úteis para galvanizar o sentimento patriótico, mas potencialmente perigosos se criarem expectativas irreais na população”, analisa Tatiana Stanovaya, pesquisadora do Carnegie Russia Eurasia Center.

Quando algum líder ultra-crítico ultrapassa esses limites, o Estado intervém. Casos emblemáticos incluem o líder do Wagner, Yevgeny Prigozhin, eliminado em circunstâncias controversas após desafiar abertamente o alto comando militar, e Igor Girkin, condenado a quatro anos de prisão por incitar extremismo.

Motivação e estratégia do Kremlin

Por um lado, o Kremlin utiliza a ala nacionalista para justificar sanções internas e moldar a narrativa de um “cerco” externo. Por outro, não deseja uma radicalização que inviabilize qualquer acordo. Duas regras fundamentais regem essa dinâmica:

  1. Não criticar pessoalmente Putin nem a cúpula militar.
  2. Manter o discurso dentro das metas oficiais de “defesa de territórios reivindicados”.

Quando chegar o momento de um possível cessar-fogo, a expectativa é de que o próprio Estado atue como moderador: “Será como um interruptor: de um dia para o outro, o tom muda”, afirma uma fonte envolvida nos bastidores das negociações.

Impacto sobre as negociações de paz

As declarações inflamadas dos Z-patriots complicam as negociações ao:

  • Elevar o custo político de concessões. Um líder que queira evitar a acusação de “traidor” precisaria enfrentar uma opinião pública aquecida.
  • Criar ruído midiático, confundindo interlocutores ucranianos e parceiros internacionais sobre a real posição de Moscou.
  • Forçar retóricas mais duras por parte de Putin para manter a coesão do espectro político interno antes de suavizar o discurso.

Apesar disso, analistas acreditam que o presidente russo está determinado a alcançar um acordo que consolide ganhos territoriais e garanta segurança jurídica a longo prazo. Sem mudanças drásticas no front, manter a escalada pode se tornar mais oneroso do que negociar.

Contexto histórico e legal

Novorossiya (“Nova Rússia”) e Malorossiya (“Pequena Rússia”) são conceitos que remontam ao período imperial russo e foram reativados politicamente na era contemporânea:

  • Origens imperiais
  • No século 18, após as conquistas da Crimeia e da região à beira do Mar Negro, a imperatriz Catarina II governou territórios que passaram a ser chamados de Novorossiya, incorporando partes do que hoje são sul da Ucrânia e norte do Cáucaso.
  • “Pequena Rússia” (Malorossiya) era um termo etnográfico e administrativo usado para designar as terras centrais da Ucrânia, refletindo a visão de Moscou sobre a unidade cultural e histórica entre russos e ucranianos.
  • Renascimento na propaganda contemporânea
  • A partir de 2014, ativistas e ideólogos pró-Kremlin resgataram esses termos para legitimar demandas territoriais. Cartografias alternativas de Novorossiya circularam em meios russos, propondo a anexação de regiões como Donetsk, Lugansk, Kherson, Zaporizhzhia e até Odesa.
  • O uso de “Malorossiya” ganhou relevo em discursos de nacionalistas como Konstantin Malofeyev, que invocam uma suposta continuidade histórica do domínio russo sobre a Ucrânia.
  • Implicações legais internacionais
  • Nos termos da Carta das Nações Unidas e de princípios consagrados no direito internacional, anexações resultantes de coerção militar são consideradas ilegítimas. A Convenção de Helsinque (1975) reforça o respeito por fronteiras invioláveis e pela integridade territorial dos Estados.
  • A comunidade internacional não reconheceu as anexações russas de 2014 (Crimeia) nem as declarações de inclusão de quatro oblasts ucranianos em 2022, considerando-as violação do artigo 2(4) da ONU, que proíbe o uso da força para aquisição de território.
  • Relevância para as negociações de paz
  • Ao reivindicar Novorossiya/Malorossiya, os Z-patriots elevam as expectativas de ganhos além das metas oficiais de Kremlin, dificultando concessões que respeitem o arcabouço jurídico internacional.
  • Qualquer acordo de paz duradouro terá de conciliar essas demandas expansionistas com garantias de soberania ucraniana, possivelmente exigindo fórmulas de autonomia regional dentro dos limites reconhecidos pela ONU.

Perspectivas e riscos

  1. Continuação gradual do impasse: Se os nacionalistas vencerem influência, o conflito pode se prolongar em níveis de baixa intensidade, com riscos constantes de escalada.
  2. Convergência rumo à paz limitada: Caso o Kremlin tenha sucesso em conter o discurso extremo, pode surgir um cessar‑fogo condicionado a autonomias regionais e garantias de neutralidade militar da Ucrânia.
  3. Ruptura interna: A falta de sintonia entre o Estado e o núcleo belicista pode gerar crises políticas, inclusive incentivando rebeliões internas semelhantes à de Prigozhin.

Conclusão

A luta por narrativas entre o Estado russo e os Z-patriots reflete um dilema central de Moscou: como manter o apoio popular à guerra sem comprometer a capacidade de negociar uma paz que atenda aos objetivos estratégicos definidos por Putin. Se, por um lado, o Kremlin se vale dos ultranacionalistas para sustentar a coesão nacional, por outro precisa domar sua retórica agressiva para viabilizar um acordo que lhe assegure vitórias políticas e territoriais. O desfecho dependerá tanto da habilidade de Moscou em guiar esse grupo quanto da paciência dos parceiros internacionais em decifrar o discurso oficial e o radical.

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