
Enquanto o presidente Vladimir Putin ensaia conversas de paz para encerrar o conflito na Ucrânia, um grupo de nacionalistas russos — autodenominados “Z-patriots” — empreende uma campanha para manter a guerra em curso. Esse núcleo de influenciadores, jornalistas de guerra e figuras políticas radicais se apresenta como porta-vozes de uma ala beligerante que exige avanços territoriais ambiciosos, mesmo quando o Kremlin sinaliza disposição para negociações.
A ala belicista e seu papel
Os Z-patriots ganharam notoriedade ao surgirem como comentaristas endossados informalmente pelo Ministério da Defesa russo, com público expressivo em plataformas como o Telegram. Têm seguidores que ultrapassam meio milhão, alcançando militares, empresários e parte da sociedade civil. Entre as vozes mais destacadas estão:
- Pavel Gubarev, ativista em Donetsk, que afirmou ser inadmissível “congelar” o conflito e alertou contra a rendição de armas e territórios.
- Konstantin Malofeyev, oligarca e ideólogo ultranacionalista, que clama pela “libertação completa” das regiões históricas de Novorossiya e Malorossiya.
- Dmitry Medvedev, antigo presidente e hoje vice–chefe do Conselho de Segurança, que apesar de próximo a Putin, teme que uma trégua possa dar “respiro” ao Exército ucraniano.
Esses atores não atuam em conjunto — alguns se reportam ao Estado-Maior, outros mantêm laços com agências de inteligência ou unidades paramilitares como o grupo Wagner. Ainda assim, todos convergem em insistir numa postura intransigente.
Conflito interno: controle versus rua
Fontes próximas ao Kremlin relatam que, embora os Z-patriots sejam tolerados, há limites bem definidos para suas intervenções públicas. Segundo especialistas, Putin e seus serviços de inteligência monitoram de perto esses nacionalistas para evitar que o discurso beligerante ultrapasse as metas oficiais de guerra.
“Eles são úteis para galvanizar o sentimento patriótico, mas potencialmente perigosos se criarem expectativas irreais na população”, analisa Tatiana Stanovaya, pesquisadora do Carnegie Russia Eurasia Center.
Quando algum líder ultra-crítico ultrapassa esses limites, o Estado intervém. Casos emblemáticos incluem o líder do Wagner, Yevgeny Prigozhin, eliminado em circunstâncias controversas após desafiar abertamente o alto comando militar, e Igor Girkin, condenado a quatro anos de prisão por incitar extremismo.
Motivação e estratégia do Kremlin
Por um lado, o Kremlin utiliza a ala nacionalista para justificar sanções internas e moldar a narrativa de um “cerco” externo. Por outro, não deseja uma radicalização que inviabilize qualquer acordo. Duas regras fundamentais regem essa dinâmica:
- Não criticar pessoalmente Putin nem a cúpula militar.
- Manter o discurso dentro das metas oficiais de “defesa de territórios reivindicados”.
Quando chegar o momento de um possível cessar-fogo, a expectativa é de que o próprio Estado atue como moderador: “Será como um interruptor: de um dia para o outro, o tom muda”, afirma uma fonte envolvida nos bastidores das negociações.
Impacto sobre as negociações de paz
As declarações inflamadas dos Z-patriots complicam as negociações ao:
- Elevar o custo político de concessões. Um líder que queira evitar a acusação de “traidor” precisaria enfrentar uma opinião pública aquecida.
- Criar ruído midiático, confundindo interlocutores ucranianos e parceiros internacionais sobre a real posição de Moscou.
- Forçar retóricas mais duras por parte de Putin para manter a coesão do espectro político interno antes de suavizar o discurso.
Apesar disso, analistas acreditam que o presidente russo está determinado a alcançar um acordo que consolide ganhos territoriais e garanta segurança jurídica a longo prazo. Sem mudanças drásticas no front, manter a escalada pode se tornar mais oneroso do que negociar.
Contexto histórico e legal
Novorossiya (“Nova Rússia”) e Malorossiya (“Pequena Rússia”) são conceitos que remontam ao período imperial russo e foram reativados politicamente na era contemporânea:
- Origens imperiais
- No século 18, após as conquistas da Crimeia e da região à beira do Mar Negro, a imperatriz Catarina II governou territórios que passaram a ser chamados de Novorossiya, incorporando partes do que hoje são sul da Ucrânia e norte do Cáucaso.
- “Pequena Rússia” (Malorossiya) era um termo etnográfico e administrativo usado para designar as terras centrais da Ucrânia, refletindo a visão de Moscou sobre a unidade cultural e histórica entre russos e ucranianos.
- Renascimento na propaganda contemporânea
- A partir de 2014, ativistas e ideólogos pró-Kremlin resgataram esses termos para legitimar demandas territoriais. Cartografias alternativas de Novorossiya circularam em meios russos, propondo a anexação de regiões como Donetsk, Lugansk, Kherson, Zaporizhzhia e até Odesa.
- O uso de “Malorossiya” ganhou relevo em discursos de nacionalistas como Konstantin Malofeyev, que invocam uma suposta continuidade histórica do domínio russo sobre a Ucrânia.
- Implicações legais internacionais
- Nos termos da Carta das Nações Unidas e de princípios consagrados no direito internacional, anexações resultantes de coerção militar são consideradas ilegítimas. A Convenção de Helsinque (1975) reforça o respeito por fronteiras invioláveis e pela integridade territorial dos Estados.
- A comunidade internacional não reconheceu as anexações russas de 2014 (Crimeia) nem as declarações de inclusão de quatro oblasts ucranianos em 2022, considerando-as violação do artigo 2(4) da ONU, que proíbe o uso da força para aquisição de território.
- Relevância para as negociações de paz
- Ao reivindicar Novorossiya/Malorossiya, os Z-patriots elevam as expectativas de ganhos além das metas oficiais de Kremlin, dificultando concessões que respeitem o arcabouço jurídico internacional.
- Qualquer acordo de paz duradouro terá de conciliar essas demandas expansionistas com garantias de soberania ucraniana, possivelmente exigindo fórmulas de autonomia regional dentro dos limites reconhecidos pela ONU.
Perspectivas e riscos
- Continuação gradual do impasse: Se os nacionalistas vencerem influência, o conflito pode se prolongar em níveis de baixa intensidade, com riscos constantes de escalada.
- Convergência rumo à paz limitada: Caso o Kremlin tenha sucesso em conter o discurso extremo, pode surgir um cessar‑fogo condicionado a autonomias regionais e garantias de neutralidade militar da Ucrânia.
- Ruptura interna: A falta de sintonia entre o Estado e o núcleo belicista pode gerar crises políticas, inclusive incentivando rebeliões internas semelhantes à de Prigozhin.
Conclusão
A luta por narrativas entre o Estado russo e os Z-patriots reflete um dilema central de Moscou: como manter o apoio popular à guerra sem comprometer a capacidade de negociar uma paz que atenda aos objetivos estratégicos definidos por Putin. Se, por um lado, o Kremlin se vale dos ultranacionalistas para sustentar a coesão nacional, por outro precisa domar sua retórica agressiva para viabilizar um acordo que lhe assegure vitórias políticas e territoriais. O desfecho dependerá tanto da habilidade de Moscou em guiar esse grupo quanto da paciência dos parceiros internacionais em decifrar o discurso oficial e o radical.
Faça um comentário