Síria planeja incorporar ex-jihadistas ao Exército

Thomas Barrack, enviado especial dos EUA para a Síria, em frente à residência do embaixador americano em Damasco, Síria, em 29 de maio de 2025.
Thomas Barrack, enviado especial dos EUA para a Síria, durante visita à residência do embaixador dos EUA em Damasco, em 29 de maio de 2025. Foto: REUTERS/Firas Makdesi.

Nos últimos meses, a nova liderança síria formalizou um plano para integrar aproximadamente 3.500 combatentes estrangeiros—em sua maioria membros do Turkistan Islamic Party (TIP), grupo conhecido como jihadista uigur—no que passará a ser a 84ª Divisão do Exército sírio. A proposta, apresentada como forma de “incorporar e controlar” esses militantes, gerou forte repercussão diplomática, sobretudo em Washington e em Pequim.

Contexto histórico do conflito e dos combatentes estrangeiros

Desde o início da guerra civil síria, em 2011, voluntários de países vizinhos e de regiões distantes—em especial uigures da China, cazaques, uzbeques e outros centro-asiáticos—acompanharam diferentes frentes rebeldes para combater o regime de Bashar al-Assad. Grande parte desses estrangeiros filiou-se ao Hayat Tahrir al-Sham (HTS), coalizão que, segundo o novo cenário político, derrotou Assad e assumiu o poder em diversas províncias no ano passado.

Esses combatentes estrangeiros formaram unidades especializadas, frequentemente descritas como disciplinares e altamente capacitadas em operações de guerrilha e ataques suicidas. Para as autoridades de Damasco, sua participação foi crucial em batalhas contra o Estado Islâmico e contra facções rivais. No entanto, a presença de uigures e outros jihadistas representava um entrave à reaproximação com o Ocidente, pois havia suspeita de vínculos com redes terroristas internacionais.

O plano de integração e as promessas de transparência

Segundo declarações de Thomas Barrack, enviado especial do presidente Donald Trump para a Síria, houve um “entendimento condicional” para que essa integração ocorra de forma transparente. A ênfase na transparência visa evitar que células jihadistas sejam recriadas internamente ou que recursos do novo Estado alimentem facções extremistas.

Para implementar essa iniciativa, foram definidas etapas principais:

  1. Identificação e filtragem ideológica:
    • Combatentes passaram por um processo de “filtragem ideológica” para comprovar lealdade ao novo governo de Ahmed al-Sharaa, presidente interino. O especialista Abbas Sharifa destaca que esses jihadistas tiveram de renunciar a qualquer filiação anterior a outras redes transnacionais.
  2. Inspeção de currículos militares:
    • Documentos oficiais indicam que muitos desses estrangeiros registraram experiência em combates urbanos e treinamento em campos no norte da Síria. Isso levou as autoridades a classificá-los como “recursos militares valiosos”.
  3. Jura de fidelidade ao Estado sírio:
    • Representantes do TIP afirmam que o grupo “se dissolveu” e agora “opera exclusivamente sob autoridade do Ministério da Defesa”, comprometendo-se a “não manter vínculos externos”.
  4. Inclusão na 84ª Divisão:
    • A nova unidade, formada por ex-rebeldes locais e estrangeiros, terá um quadro operacional voltado à reconquista e manutenção de áreas recapturadas, especialmente no noroeste e no sul do país.

Promoções recentes de ex-rebeldes a oficiais

Em dezembro de 2024, o governo liderado por Ahmed al-Sharaa emitiu um decreto promovendo vários ex-rebeldes—incluindo jihadistas estrangeiros—ao posto de oficiais do Exército sírio. Entre os promovidos estavam um uigur, um jordaniano e um turco que integravam a antiga hierarquia do HTS. Essas promoções representam um avanço prático na integração de combatentes estrangeiros, estreitando ainda mais sua ligação com o novo aparato militar.

Analistas do Observatório Sírio para os Direitos Humanos identificaram ao menos seis jihadistas estrangeiros promovidos: um albanês, um jordaniano, um tadjique, um uigur, um turco e outro militante cujo país de origem não foi confirmado. O especialista em jihadismo Aymen al-Tamimi ressaltou que esses oficiais costumavam coordenar ações de unidades suicidas do HTS e, agora, passam a “atuar dentro da ordem militar regular, sob supervisão direta do Ministério da Defesa”.

Reações internacionais: Estados Unidos, China e vizinhos

Estados Unidos

Até abril de 2025, o Departamento de Estado dos EUA exigia que a Síria excluísse combatentes estrangeiros de suas forças de segurança, alegando que isso facilitaria a manutenção das sanções e reduziria riscos de financiamento a redes terroristas. Porém, após a visita de Donald Trump ao Oriente Médio, houve reviravolta na postura americana. Para Thomas Barrack, manter esses jihadistas “dentro de um programa estatal” representa menos perigo do que deixá-los soltos, onde poderiam se aliar a redes como al Qaeda ou Estado Islâmico.

Ainda que o Pentágono não tenha emitido comentários oficiais, diplomatas americanos afirmam que a inclusão desses combatentes requer “sistemas de monitoramento rigorosos” para evitar que eles mantenham “contatos ilícitos” com ex-líderes do HTS.

China

Pequim observa com preocupação a integração dos uigures ao Exército sírio, uma vez que muitos fazem parte do Turkistan Islamic Party, grupo considerado terrorista pela China. O Ministério das Relações Exteriores chinês reafirmou que “a Síria deve se opor a qualquer forma de terrorismo e extremismo” e pressionou por restrições à atuação dos uigures.

Fontes diplomáticas em Pequim alertam que, caso esses combatentes retornem ao país ou mantenham rotas de comunicação, poderiam reforçar redes extremistas na região do Xinjiang. Contudo, o TIP nega vínculos externos e afirma ter se submetido completamente ao governo sírio.

Vizinhos regionais

A Turquia e a Jordânia acompanham o processo com cautela. Ancara, que já abrigou campos de treinamento para rebeldes sírios, teme o retorno de combatentes radicais e exige relatórios periódicos sobre o paradeiro dos estrangeiros. A Jordânia, por sua vez, ofereceu abrigar familiares desses jihadistas em centros monitorados pela ONU, condicionados a um rígido processo de checagem de antecedentes.

Desafios de segurança e riscos internos

A integração de ex-jihadistas traz riscos evidentes:

  • Ressurgimento de facções rebeldes: Caso a 84ª Divisão adote uma postura fragmentada, dissidentes podem escapar e restabelecer rotas de financiamento para grupos como IS-K ou outras células remanescentes da Al-Qaeda.
  • Conflitos de lealdade: Mesmo após a jura de fidelidade, parte dos combatentes pode manter laços clandestinos com redes extremistas. Fontes do Ministério de Defesa sírio relataram casos em que uigures foram flagrados usando comunicações via satélite para se coordenar com antigos comandantes do HTS.
  • Desafio de reinserção: Transformar um jihadista em soldado regular envolve reeducação e reciclagem no modelo de hierarquia militar convencional, o que consome recursos estratégicos que poderiam ser empregados na reconstrução de infraestruturas civis.

O especialista Abbas Sharifa ressalta que “essas unidades estrangeiras exibiam alto grau de coesão ideológica, algo incompatível com uma tropa de cunho nacionalista. A filtragem ideológica deve ser profunda para evitar que a 84ª Divisão reproduza práticas sectárias”.

Perspectivas políticas e humanitárias

Para a população síria, o impacto é duplo:

  1. Legitimação política:
    • A nova liderança busca projetar uma imagem de “unidade nacional”, reunindo ex-rebeldes locais e estrangeiros em um só contingente. Esse gesto simboliza o fim das divisões sectárias e reforça a “força governamental” contra ameaças terroristas.
  2. Questões humanitárias:
    • Organizações como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional aconselham que a oferta de cidadania a combatentes e seus familiares seja condicionada a verificações detalhadas de direitos humanos. Caso contrário, existe o risco de prisões arbitrárias e revitimização de populações que sofreram sob o HTS.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) recomendou que, paralelamente à integração militar, seja garantido o acesso de refugiados e deslocados internos a serviços básicos. Muitos uigures migraram com famílias inteiras, mas ausência de documentação formal gera vulnerabilidade extrema.

Impacto sobre sanções e relações com o Ocidente

Mesmo com o “entendimento com transparência” anunciado pelos EUA, o futuro das sanções dependerá de comprovações concretas de que o novo Exército sírio não receberá fundos ilícitos. A União Europeia ainda não se pronunciou oficialmente, mas diplomatas em Bruxelas acompanham o processo para avaliar a possível revisão de embargos.

Se a Síria demonstrar que a 84ª Divisão está integralmente sob comando estatal, sem conexões externas, pode haver:

  • Alívio gradual das sanções de petróleo e gás, viabilizando reinjeção de recursos na economia.
  • Retorno parcial de investimentos estrangeiros, principalmente de países do Golfo que já financiam projetos de reconstrução em Alepo e Homs.

Por outro lado, qualquer indício de financiamento paralelo ao TIP ou ao HTS poderá resultar em novas resoluções da ONU e cortes no fluxo de ajuda humanitária.

Conclusão

A decisão de incorporar ex-jihadistas estrangeiros ao Exército sírio representa um momento decisivo nas negociações entre Damasco, Washington e Pequim. Por um lado, o governo sírio ganha mão de obra experiente e demonstra pragmatismo ao reaproveitar combatentes que, do contrário, poderiam alimentar outras redes extremistas. Por outro, essa iniciativa exige níveis excepcionais de transparência e vigilância contínua para evitar que antigos vínculos jihadistas ressuscitem.

Com a 84ª Divisão prestes a ser oficialmente ativada, as próximas semanas serão cruciais para comprovar se esse modelo de integração será realmente eficaz ou se, ao contrário, criará novas vulnerabilidades à segurança regional. Além disso, permanece o questionamento sobre o destino de famílias uigures, que hoje vivem em situação de alta vulnerabilidade sem documentos. Em última análise, o êxito ou fracasso dessa estratégia poderá definir o rumo das relações da Síria com o Ocidente — e, consequentemente, o futuro do Levante.

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