
Em 7 de janeiro de 2025, o governo de Gana anunciou que suspenderia suas relações diplomáticas com a República Árabe Saaraui Democrática (RASD) e passaria a apoiar formalmente o Plano de Autonomia proposto por Marrocos para o Saara Ocidental. A declaração conjunta do Ministério das Relações Exteriores de Gana indicou que tal iniciativa constitui “a única base realista e sustentável para uma solução mutuamente acordada dentro do arcabouço das Nações Unidas”. Trata-se de uma guinada significativa na política externa de Accra, tradicionalmente alinhada ao princípio de autodeterminação dos povos, refletido na posição pró-RASD desde 1979. Nos meses subsequentes, outras potências globais – incluindo o Reino Unido – anunciaram respaldo semelhante, reforçando o ímpeto diplomático de Rabat.
Contexto Histórico do Conflito do Saara Ocidental
O Saara Ocidental foi território colonial espanhol até 1975, quando a Espanha se retirou sem realizar o referendo de autodeterminação previsto. Logo em seguida, Marrocos e Mauritânia partilharam o controle do território, mas o Movimento Polisário, fundado em 1973, proclamou a RASD em 1976 e iniciou a luta armada contra ambas as anexações, recebendo o apoio logístico e político da Argélia. Após a Mauritânia recuar, Marrocos consolidou presença militar e civil, considerando o Saara Ocidental como parte de suas “provincias del sur”. Até hoje, as Nações Unidas mantêm a região na lista de “territórios a serem descolonizados”, sem conseguir viabilizar o referendo livre prometido desde a década de 1990.
Embora o cesse-fogo de 1991 tenha sido estabelecido sob a égide da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (MINURSO), a falta de acordo sobre critérios de elegibilidade para votação impediu a realização do plebiscito, prolongando a disputa política e territorial. Enquanto Marrocos investe em infraestrutura urbana e exploração de recursos (fósforo, pesca, potencial energético), o Polisário mantém campos de refugiados em Tindouf (Argélia) e reivindica independência plena, apoiado institucionalmente por Argel durante décadas.
O Plano de Autonomia Marroquino
Lançado em 2007, o Plano de Autonomia prevê a criação de um “Governo Regional” dotado de competências em áreas como educação, saúde, desenvolvimento econômico, cultura e administração local, porém sob soberania plena de Marrocos. O reino marroquino manteria controle sobre defesa, segurança, relações exteriores, moeda, bandeira e outros símbolos nacionais. A iniciativa foi, desde o princípio, considerada “séria, crível e realista” por ex-funcionários da ONU, tendo recebido reconhecimento formal dos Estados Unidos em dezembro de 2020 e da França em julho de 2024.
Até abril de 2025, Marrocos reportou apoio de 116 Estados-membros da ONU ao Plano de Autonomia, equivalente a mais de 60% dos países que reconhecem a ONU, incluindo importantes atores na África Subsaariana e na América Latina. O apoio de Gana, seguido por declarações de respaldo de países como Quênia, Reino Unido e Panamá, demonstra a crescente legitimidade internacional da proposta, embora não elimine objeções centrais de Argel e do Polisário, que pressionam por um referendo de autodeterminação com opção de independência total.
Motivações para a Mudança de Posição de Gana
- Contexto Político Interno
- A decisão ganense foi anunciada poucos dias antes da posse do presidente John Dramani Mahama, em 7 de janeiro de 2025, sinalizando uma nova orientação externa ao enfatizar “princípios de legalidade internacional e diplomacia pragmática”. O ministro das Relações Exteriores, Samuel Okudzeto Ablakwa, destacou que Gana buscaria “cooperação ampla com parceiros que contribuam para a estabilidade regional e interesses econômicos do país”.
- Segurança Regional e Estabilidade no Sahel
- A proximidade de Gana com Burkina Faso, epicentro de atividades jihadistas no Sahel, levou Accra a enxergar o Polisário como um possível fator de instabilidade, embora oficialmente o Movimento Polisário não esteja envolvido em ações terroristas. A justificativa oficial menciona que apoiar o Plano de Autonomia marroquino poderia fomentar “cooperação em segurança e inteligência, fortalecendo a fronteira Setentrional de Gana contra grupos armados”.
- Interesses Econômicos e Cooperação Bilateral com Marrocos
- Durante as negociações em Rabat, discutiu-se intensificar cooperação em defesa, firmar acordo de isenção de vistos e estreitar laços comerciais. A OCP (Office Chérifien des Phosphates), gigante marroquina no setor de fertilizantes, é vista como parceira estratégica para Gana aumentar a produtividade agrícola — especialmente no setor do cacau, principal commodity ganense — e reduzir em até US$ 3 bilhões anuais o déficit em importações de alimentos. Ainda, como parte do consórcio do gasoduto Marrocos-Nigéria, Gana busca diversificar sua matriz energética e facilitar o acesso ao gás natural, reduzindo custos industriais e atraindo investimentos estrangeiros.
Reações Regionais e Internacionais
- Posição da Argélia e do Polisário
- A Argélia declarou “profunda surpresa e desapontamento” com a decisão de Gana, reforçando seu apoio incondicional ao direito de autodeterminação do povo saaraui. Organizações civis próximas ao Polisário, como o Pan-African Lawyers Union, criticaram Accra por “violar os valores pan-africanos de solidariedade e autodeterminação”, chamando a mudança de “desvio inaceitável dos ideais de Nkrumah”. Kamal Fadel, representante da RASD na Austrália, classificou o gesto como “uma traição aos princípios históricos de Gana em prol dos interesses de potências externas”.
- Postura da União Africana e Outras Capitais Subsaarianas
- Mesmo com a maioria dos Estados-membros da UA não reconhecendo mais a RASD (46 países suspenderam ou retiraram reconhecimento desde 2000), o tema segue delicado em fóruns africanos. A movimentação de Gana foi interpretada como reflexo da “diplomacia econômica marroquina”, alinhada ao plano de investimentos de Rabat em infraestrutura no continente. Entretanto, organizações da sociedade civil africana opuseram-se, alertando para o “enfraquecimento da coesão pan-africana” e o risco de abrir precedentes para outros países abandonarem causas de autodeterminação interna.
- Engajamento de Países Ocidentais: Reino Unido e Estados-Unidos
- Em 1° de junho de 2025, o Reino Unido formalizou seu apoio ao Plano de Autonomia, classificando-o como a proposta mais “crível, viável e pragmática” para resolver o litígio no Saara Ocidental. O chanceler britânico David Lammy ressaltou que a decisão visava “reforçar a estabilidade no Norte da África” e acompanhou a assinatura de acordos de cooperação em infraestrutura, saúde e inovação com Marrocos. Com isso, o Reino Unido juntou-se aos Estados-Unidos (desde dezembro de 2020) e à França (desde julho de 2024) como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU que endossa explicitamente o plano marroquino.
- Apoios na Ásia, América Latina e Europa Oriental
- Em março de 2025, o Cazaquistão vizinho à Ásia Central declarou suporte incondicional à soberania marroquina e ao Plano de Autonomia, valorizando o “ênfase na integridade territorial” e reforçando o prestígio internacional de Rabat. Na América Latina, Panamá e Equador somaram-se ao coro de apoios no final de 2024, levando o total de reconhecimentos a mais de 120 Estados até abril de 2025. Em contrapartida, atores como Rússia e China mantêm posição neutra, defendendo que qualquer solução deve passar pela ONU e garantir o direito de voto dos habitantes do Saara Ocidental em referendo que inclua a independência como opção.
Implicações Econômicas e Cooperativas
- Fertilizantes e Segurança Alimentar
- A cooperação entre OCP e empresas agrícolas ganenses tem potencial para modernizar o setor de cacau, reduzindo custos de produção e aumentando a renda dos fazendeiros. Dados do Ministério da Agricultura de Gana projetam que, com distribuição adequada de fertilizantes, a produtividade pode subir em até 20% já no ciclo 2025/2026, aliviando a balança comercial que registra déficit anual de cerca de US$ 3 bilhões em alimentos importados.
- Energia e Infraestrutura Regional
- A participação de Gana no consórcio do gasoduto Marrocos-Nigéria reforça sua estratégia de diversificação energética. O projeto visa transportar até 12 bilhões de metros cúbicos de gás por ano, beneficiando países sem litoral no Sahel e ajudando Gana a reduzir o custo da energia elétrica industrial em até 15%, conforme estudos preliminares de viabilidade técnica do consórcio. Além disso, parcerias em projetos de hidrovias e portos no Atlântico poderiam inserir Gana como ponto alternativo para exportações de objetos manufaturados do Sahel, reduzindo a dependência de rotas tradicionais por Lagos.
- Parcerias em Defesa e Segurança
- Acordos assinados entre os ministérios de Defesa de Gana e Marrocos incluem treinamentos conjuntos de tropas em operações de contraterrorismo, intercâmbio de inteligência e fornecimento de equipamentos militares. Fontes oficiais indicam que até 500 soldados ganenses participarão de exercícios anuais no Norte de Marrocos, com foco em táticas de resposta rápida a células terroristas. Essa aliança também se estende a operações coordenadas de vigilância de rotas de tráfico ilícito que transitam pelo Sahel até o Norte de África.
Análise Geopolítica
- Expansão da Diplomacia Marroquina na África Subsaariana
- Desde a reentrada na União Africana em 2017, Marrocos intensificou investimentos em infraestrutura, saúde e educação em países subsaarianos, criando um “corredor econômico” que reforça laços comerciais e políticos. Entre 2018 e 2024, Rabat assinou mais de 50 acordos de cooperação bilateral, canalizando cerca de US$ 2,5 bilhões em financiamentos para projetos de desenvolvimento social em 15 países africanos. O suporte de Gana fortalece ainda mais essa rede, possivelmente abrindo portas para instituições financeiras marroquinas operarem em Accra.
- Reconfiguração das Solidariedades Pan-Africanas
- Historicamente, Gana foi berço do pan-africanismo, sob liderança de Kwame Nkrumah, recebendo movimentos de libertação como ANC e SWAPO. A mudança de postura em relação à RASD sugere que, para algumas capitais africanas, interesses pragmáticos – segurança, economia e parcerias comerciais – podem superar antigas alianças ideológicas. Esse deslocamento sinaliza que a “solidariedade africana” se redefine no contexto de dinâmicas econômicas globais e pressões por desenvolvimento rápido.
- Rivalidade Marroquino-Argelina Intensificada
- O contencioso do Saara Ocidental serve de palanque para a rivalidade histórica entre Marrocos e Argélia. A Argélia acusa Marrocos de usar o Plano de Autonomia como instrumento de “expansionismo econômico” na África, enquanto Rabat reprova o “modus operandi” argelino de sustentar regimes que fomentam instabilidade no Sahel. O apoio de Gana é visto em Argel como “vitória diplomática de Rabat”, potencialmente minando a influência do Polisário em fóruns africanos e internacionais.
Perspectivas para o Processo na ONU e Possíveis Desdobramentos
- Rumo a Nova Resolução do Conselho de Segurança
- O Plano de Autonomia permanece oficialmente em discussão no Conselho de Segurança desde 2007, mas sem consenso para aprovar resolução definitiva. A entrada de Gana e, recentemente, do Reino Unido como apoiadores pode dar novo impulso político para que os cinco membros permanentes (P5) examinem uma proposta de texto que inclua supervisão internacional das etapas de implementação, com cronograma e garantias de direitos humanos para os habitantes do Saara Ocidental.
- Reação do Polisário e da RASD nas Organizações Internacionais
- O Movimento Polisário deverá intensificar mobilizações junto a blocos não alinhados, apelando à União Africana e ao Movimento de Países Não Alinhados para denunciar “violação de resoluções da ONU”. Entretanto, sem recursos financeiros ou diplomáticos comparáveis aos de Marrocos, é improvável que o Polisário reverta, no curto prazo, a maré dos reconhecimentos internacionais.
- Possibilidade de Outros Reconhecimentos e Impulsionamento do Plano
- Se a tendência atual se mantiver, até o final de 2025 Marrocos pode contar com apoios formais de mais 10 a 15 Estados-membros, sobretudo na Europa Oriental e Ásia Central. O governo de Rabat apontou que, em reuniões recentes com embaixadores africanos em Rabat, emergiu o compromisso de outros países, como Malásia e Emirados Árabes Unidos, de emitir declarações de apoio nas próximas sessões da ONU.
Conclusão
A adoção, por parte de Gana, do Plano de Autonomia marroquino para o Saara Ocidental reflete uma reconfiguração profunda na diplomacia subsaariana. Além de legitimar internacionalmente a proposta de Rabat, a decisão enfatiza que Estados em desenvolvimento priorizam interesses de segurança, integração econômica e cooperação bilateral sobre solidariedades ideológicas do passado. Enquanto Argel reforça sua posição pró-Polisário, Marrocos amplia sua rede de alianças — impulsionada também pelo recente apoio do Reino Unido em junho de 2025 — e consolida-se como ator-chave na definição do futuro geopolítico do Magrebe e do Sahel. O sucesso ou fracasso da iniciativa dependerá, sobretudo, da capacidade de Rabat e de Accra de entregar resultados concretos — desde a melhoria da produtividade agrícola em Gana até avanços reais na qualidade de vida das comunidades do Saara Ocidental.
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