Flexibilização Fiscal para a Defesa: Como a UE Libertou 15 Estados‑Membros para Aumentar Gastos Militares e Mobilizar €800 Bilhões até 2030

Bandeira da União Europeia azul com estrelas amarelas sobre um fundo claro, simbolizando unidade e cooperação europeia.
Bandeira da União Europeia representa a união dos países membros e o fortalecimento da defesa coletiva no continente. Foto: MIH83

Diante de um cenário geopolítico em rápida deterioração e da crescente pressão por autonomia estratégica, a União Europeia tomou uma decisão sem precedentes em julho de 2025: liberar 15 Estados‑Membros das amarras fiscais do Pacto de Estabilidade e Crescimento, permitindo-lhes exceder temporariamente os limites de déficit e dívida pública exclusivamente para fortalecer seus orçamentos de defesa.

A medida marca uma inflexão histórica na política econômica da UE e faz parte do plano “Readiness 2030 / ReArm Europe”, que visa mobilizar até €800 bilhões em investimentos em defesa até o fim da década. A decisão, celebrada por muitos como necessária, também levanta questionamentos quanto ao equilíbrio entre segurança e responsabilidade fiscal.

O que está em jogo: contexto geopolítico e vulnerabilidades europeias

A invasão russa da Ucrânia em 2022, somada à crescente assertividade militar da China, trouxe de volta ao continente europeu o senso de urgência em matéria de defesa coletiva. Segundo Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, “a Europa deve agora ser capaz de se proteger, projetar força e agir de forma coordenada”.

Além das ameaças convencionais, os Estados‑Membros enfrentam novos tipos de crises — cibernéticas, climáticas e híbridas. Incêndios florestais, inundações e pandemias recentes evidenciaram a fragilidade da infraestrutura crítica europeia, algo que a Comissão agora tenta abordar com uma estratégia dual: mais investimento militar e maior resiliência civil.

Flexibilização fiscal: o que foi autorizado?

Em 8 de julho de 2025, o Conselho Europeu ativou a chamada “cláusula de escape nacional”, permitindo que 15 países ultrapassem o limite de 3 % de déficit público, desde que o excesso (até 1,5 % do PIB) seja dedicado exclusivamente a despesas de defesa verificáveis — aquisição de armamento, infraestruturas militares e capacidades estratégicas.

Os 15 países autorizados:

  • Bélgica, Bulgária, Croácia, República Checa, Dinamarca, Estónia, Finlândia, Grécia, Hungria, Letónia, Lituânia, Polónia, Portugal, Eslováquia e Eslovénia.

Fontes em Bruxelas indicam que a Alemanha deverá aderir ao mecanismo até o final do verão, elevando a projeção para 16 países participantes e uma capacidade agregada de investimento superior a €650 bilhões até 2028.

ReArm Europe e SAFE: o plano para alavancar €800 bilhões

A flexibilização fiscal é o pilar central do novo plano europeu de defesa, mas está integrada num ecossistema financeiro mais amplo chamado “Readiness 2030 / ReArm Europe”, lançado em março de 2025.

Os cinco pilares do plano:

  1. Cláusula de Escape Nacional (até 1,5 % do PIB por país);
  2. SAFE (Security Action for Europe): mecanismo de €150 bilhões para compras conjuntas e apoio à indústria militar;
  3. Reprogramação de Fundos Estruturais: alocar parte do orçamento da coesão para projetos de defesa e uso dual;
  4. Financiamento via Banco Europeu de Investimento (BEI): com juros reduzidos para empresas de defesa;
  5. Mobilização de Capital Privado: por meio de incentivos fiscais e garantias públicas.

Segundo Thierry Breton, comissário do Mercado Interno, “a Europa precisa de uma base industrial sólida, integrada e interoperável — este plano cria as condições financeiras para isso”.

Quem ganha o quê: panorama por país

Exemplos de impacto por país:

  • Polónia: pretende investir €25 bilhões adicionais em defesa até 2028, ampliando sua frota aérea e capacidades antimísseis.
  • Portugal: poderá finalmente atingir a meta dos 2 % do PIB exigida pela NATO, com novos investimentos navais e modernização da Força Aérea.
  • Lituânia e Estónia: direcionarão os recursos para infraestrutura de dissuasão na fronteira com a Rússia e Belarus.
  • Grécia: foca em modernização tecnológica e sistemas de vigilância no Mediterrâneo Oriental.

OTAN e UE: convergência ou sobreposição?

Essa nova orientação fiscal aproxima a UE dos compromissos de defesa assumidos no seio da OTAN, como o piso de 2 % do PIB. Contudo, a medida também sinaliza uma tentativa de reduzir a dependência estratégica dos EUA, especialmente em tempos de incerteza política em Washington.

Segundo analistas do Instituto de Estudos Estratégicos de Bruxelas, “a UE começa a se comportar como uma entidade geopolítica, com orçamento e estratégia próprios”. A interoperabilidade entre as capacidades financiadas pela UE e a OTAN continua, no entanto, como um desafio técnico e político.

Críticas e riscos: um equilíbrio delicado

Nem todos veem a flexibilização com bons olhos. Economistas alertam para o risco de descontrole fiscal e manipulação de rubricas orçamentárias. A prática conhecida como “defense washing” — reclassificação de despesas civis como militares — já foi observada em países como a Itália, onde gastos com pensões militares e guarda costeira foram incluídos na rubrica de defesa.

Além disso, Estados tradicionalmente neutros, como a Irlanda e a Áustria, têm demonstrado resistência ao aumento de gastos militares dentro da UE, preferindo uma abordagem mais diplomática e baseada em ajuda humanitária e civil.

Resiliência civil e stockpiling: mais do que tanques

O plano europeu de defesa não se limita ao reforço militar. Em julho de 2025, a Comissão lançou a primeira Estratégia Europeia de Stockpiling, com o objetivo de criar reservas estratégicas de equipamentos críticos: medicamentos, geradores, filtros de água, telecomunicações de emergência, pontes modulares, entre outros.

Essa abordagem visa preparar a Europa para múltiplas formas de crise simultâneas, sejam de origem militar, climática ou sanitária — lições aprendidas com a pandemia de COVID-19 e os desastres naturais mais recentes.

Conclusão

A decisão de flexibilizar as regras fiscais para 15 Estados‑Membros (com possível ampliação) representa uma guinada histórica na construção da autonomia estratégica europeia. Ao combinar incentivos fiscais, financiamento coletivo e realocação de fundos estruturais, a UE dá um passo arrojado para se tornar não apenas um gigante económico, mas também um ator militar e geopolítico mais autônomo e coeso.

Contudo, o sucesso dependerá da capacidade dos governos em manter transparência, disciplina fiscal e alinhamento com metas comuns. A oportunidade de transformar este impulso em capacidades reais de dissuasão e resiliência está sobre a mesa — e o tempo, neste contexto, é um recurso tão escasso quanto o próprio orçamento.

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