
Em meio a tensões crescentes no tabuleiro geopolítico asiático, o mais recente acordo tarifário entre os Estados Unidos e o Vietnã vem sendo analisado sob múltiplas lentes. Conforme já discutido no artigo “Acordo EUA–Vietnã Redesenha o Tabuleiro Comercial Asiático”, o pacto anunciado por Donald Trump representa mais do que um ajuste nas tarifas bilaterais — trata-se de uma peça central na estratégia americana de realinhamento das cadeias de valor globais e contenção indireta da influência chinesa.
Este artigo aprofunda a análise, examinando não apenas os desdobramentos econômicos do acordo, mas também os dilemas políticos enfrentados por Hanói e o complexo equilíbrio que o Vietnã tenta manter entre Washington e Pequim.
Um Acordo de Oportunidade
O Vietnã tornou-se o terceiro país – após o Reino Unido e a China – a alcançar um acordo com o presidente Donald Trump em torno das chamadas tarifas recíprocas, anunciadas em 2 de abril de 2025. Inicialmente, os EUA impuseram uma tarifa de 46% sobre bens vietnamitas — a quinta maior entre os países-alvo na “Liberation Day” de Trump. A medida foi temporariamente suspensa, mas com previsão de reativação em 90 dias. Após negociações intensas, o prazo foi estendido para 1º de agosto, e um novo pacto foi firmado.
Principais Termos do Acordo
- Tarifas reduzidas: os EUA aplicarão uma alíquota de 20% sobre produtos vietnamitas, em vez dos 46% originais.
- Transbordo penalizado: produtos considerados “trans-shipped” (isto é, originários da China, mas roteados via Vietnã) serão tarifados em 40%.
- Abertura do mercado vietnamita: Hanói comprometeu-se a eliminar todas as tarifas de importação sobre produtos dos EUA, o que inclui veículos, semicondutores, defensivos agrícolas e produtos químicos.
A motivação de Washington é clara: impedir o desvio de exportações chinesas e consolidar parcerias comerciais confiáveis no Sudeste Asiático.
O Que Move Hanói
O Vietnã agiu com rapidez não só por razões comerciais, mas também políticas. O Congresso Nacional do Partido Comunista (CPV) se aproxima, e o secretário-geral Tô Lâm — que assumiu recentemente — busca reforçar sua legitimidade mostrando resultados econômicos concretos.
A dependência vietnamita do mercado americano é profunda: em 2024, o superávit comercial com os EUA foi de impressionantes US$ 123 bilhões. O acordo ajuda a proteger esse fluxo vital de exportações.
Além disso, o governo vietnamita:
- Realizou ações contra produtos falsificados para responder às críticas sobre propriedade intelectual.
- Enviou missões comerciais aos EUA e prometeu comprar bilhões em produtos americanos, inclusive considerando adquirir caças F-16 — algo impensável meses atrás.
O Jogo Duplo do Vietnã
Apesar da aproximação com Washington, Hanói não pode se dar ao luxo de antagonizar Pequim. A China é seu maior parceiro comercial e fornecedor de insumos industriais. Além disso, os dois países são membros do RCEP (Parceria Econômica Regional Abrangente), o maior bloco de livre comércio do mundo.
O papel do Vietnã na economia global é hoje o de montadora estratégica: componentes vindos da China são montados em fábricas vietnamitas e exportados ao Ocidente. A instalação de empresas chinesas no Vietnã vem crescendo — muitas delas buscando escapar das tarifas americanas impostas diretamente à China.
Por isso, a cláusula antitransbordo é sensível: parte da vantagem competitiva do Vietnã depende justamente desse modelo híbrido de produção. Estabelecer claramente onde termina o produto chinês e começa o produto vietnamita será um desafio técnico e diplomático para os próximos meses.
Repercussão em Pequim
A China respondeu com cautela. Enquanto alguns setores chineses podem se beneficiar — continuando a usar o Vietnã como rota de exportação — outros, especialmente no setor eletrônico e têxtil, poderão perder espaço com a fiscalização reforçada.
Além disso, preocupa a possibilidade de cooperação estratégica entre Vietnã e EUA. Ainda que Hanói mantenha distância de alianças militares, o histórico de disputas no Mar do Sul da China reacende a possibilidade de aproximações defensivas pontuais.
Para mitigar tensões, o CPV provavelmente recorrerá a seus canais “partido a partido” com o Partido Comunista Chinês, reforçando que o pacto não representa um alinhamento estratégico com os EUA.
Papel da Europa e de Terceiros
A União Europeia e o Reino Unido também têm acordos comerciais com o Vietnã. No entanto, há crescentes frustrações:
- O Vietnã tem elevado o uso de carvão em sua matriz energética, frustrando compromissos climáticos.
- Barreiras não tarifárias impedem a entrada de tecnologias verdes europeias no país.
- O fluxo de migração irregular vietnamita para a Europa persiste.
Esses fatores fazem crescer o coro por uma postura mais firme de Bruxelas — exigindo contrapartidas reais para manter benefícios comerciais.
Perspectivas
O pacto com os EUA reforça o papel do Vietnã como um elo geoestratégico vital entre o Ocidente e a Ásia. Para sustentar essa posição, Hanói terá de:
- Provar que pode conter práticas de transbordo.
- Implementar abertura de mercado prometida.
- Gerenciar habilmente sua relação com a China.
Com ambições de tornar-se um país de renda alta até 2045, o Vietnã sabe que precisa manter crescimento de 8% ao ano por duas décadas. Esse objetivo depende de acesso irrestrito aos mercados americano e europeu — algo que exige equilíbrio político fino, transparência regulatória e investimentos em inovação.
Conclusão
O acordo entre Vietnã e EUA representa mais que um pacto comercial. É um exemplo vivo de como o comércio internacional se tornou um instrumento central da disputa por influência global. O Vietnã, por sua posição geográfica e papel nas cadeias de valor, é hoje uma peça-chave nesse jogo.
E como demonstrado tanto neste texto quanto no texto que já fizemos, entender essas negociações é entender os contornos do novo século asiático — onde cada contêiner carrega não apenas mercadorias, mas também decisões estratégicas com impacto mundial.
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