
Em 9 de outubro de 2024, Moçambique realizou eleições gerais cujo resultado oficial — a vitória de Daniel Chapo (FRELIMO) — foi amplamente contestado pela oposição e por organismos da sociedade civil. Daniel Chapo, economista e ex-ministro da Economia e Finanças, representou a continuidade da hegemonia política do partido FRELIMO, no poder desde a independência. A oposição, liderada por Venâncio Mondlane (RENAMO), contestou o pleito alegando fraudes generalizadas, incluindo enchimento de urnas, manipulação do sistema de apuração e intimidação de seus agentes eleitorais, além do controle estatal dos meios de comunicação que teria restringido a transparência do processo. Esses fatores desencadearam uma série de manifestações e confrontos que se estenderam até 2025, deixando um rastro de violência, prisões em massa e graves denúncias de violações de direitos humanos.
Irregularidades Denunciadas e Reação Internacional
Logo após a votação, diversos bispos moçambicanos e o Conselho Anglicano emitiram notas públicas denunciando “fraudes em enchimento de urnas” e exortando líderes e cidadãos ao diálogo, alertando para os riscos de escalada da violência . Em 15 de novembro de 2024, 13 relatores especiais de direitos humanos da ONU pediram o fim imediato da repressão a jornalistas, advogados e manifestantes pacíficos, destacando pelo menos 30 mortes e 200 feridos entre 9 de outubro e 7 de novembro .
Escalada da Violência: Números e Cronologia
- 7 de novembro de 2024: ONU documenta ≥ 30 mortes e ≥ 200 feridos em protestos pacíficos .
- Até 23 de dezembro de 2024: plataforma Decide contabiliza 252 mortos, 569 baleados e 4.175 detidos desde 21 de outubro .
- Final de dezembro de 2024: ONG local informa 125 mortes em apenas três dias de distúrbios, elevando o total para 252 em dois meses .
- 1 de janeiro de 2025: ACNUR registra 3.000 refugiados (2.000 no Malawi, 1.000 no Essuatíni) fugindo da violência pós-eleitoral .
- Abril de 2025: Procuradoria‑Geral da República relata “quase 400 civis” mortos em confrontos com a polícia, além de 22 agentes de segurança mortos e 178 feridos .
Vozes da População: O Impacto Humano da Crise
“A polícia disparava sem aviso, crianças e idosos estavam no meio da confusão. Perdemos amigos e vizinhos”, relata Ana Júlia, moradora do bairro de Chamanculo, em Maputo. Para jovens como Carlos Matavele, 22 anos, a violência é fruto de um ciclo onde “quem protesta é tratado como inimigo, mas sem protestos não há mudança.” Estas vozes evidenciam o sofrimento real das comunidades, que veem seus direitos básicos — segurança, educação, saúde — severamente ameaçados pela instabilidade política.
Uso Excessivo da Força e Alvos Específicos
- Relatores da ONU documentaram “assassinatos deliberados de manifestantes desarmados” e uso de munição real contra civis .
- A Human Rights Watch exige investigação credível para ao menos 10 líderes da oposição mortos a tiros entre outubro de 2024 e março de 2025 — muitos executados por homens em uniformes não identificados .
- Amnistia Internacional e imprensa local relataram repetidas prisões arbitrárias, cerceamento de internet e ataques a jornalistas.
Apelos à Reconciliação
Em 22 de outubro de 2024, o arcebispo de Maputo, Dom João Carlos Hatoa Nunes, conclamou “paz, tolerância e respeito à vida” . Em 8 de novembro, a Conferência Episcopal da África Austral reforçou o pedido de apuração das denúncias eleitorais e diálogo inclusivo.
Resposta da Justiça e Caminho para Responsabilização
- Processos instaurados: Até 4 de fevereiro de 2025, a PGR abriu 651 processos-crime relacionados à crise, prometendo apurar mortes, ferimentos e danos materiais .
- Lei de manifestação: Em 29 de abril, o Procurador‑Geral Américo Letela propôs uma lei específica para punir vandalismo e restrição de liberdades durante protestos, sem tolher o direito ao ato público .
- Investigação a altos oficiais: Em 10 de julho de 2025, o ex‑ministro do Interior Pascoal Ronda foi ouvido pela PGR sobre as mortes em manifestações — um marco simbólico rumo à responsabilização de quem ordenou o uso de força letal.
Impactos Humanitários e Econômicos
A crise deslocou milhares de famílias, sobrecarregou abrigos no Malawi e Essuatíni e comprometeu serviços básicos em várias províncias. Saques a comércios, destruição de 1.677 estabelecimentos, 177 escolas e 23 unidades de saúde agravaram o custo social e econômico da instabilidade.
Contexto Histórico: Crises Eleitorais em Moçambique
A crise atual insere-se numa sequência de desafios democráticos no país. Desde o primeiro multiparlamentarismo em 1994, Moçambique alterna períodos de relativa estabilidade com episódios de contestação eleitoral marcados por violência e questionamentos à transparência. A tensão pós-eleitoral de 2024-2025 é a mais grave desde a década de 2010, refletindo desigualdades socioeconômicas persistentes e fragilidades institucionais que nunca foram plenamente superadas.
Desafios à Democracia e Perspectivas Futuras
Embora, em março de 2025, Daniel Chapo e Venâncio Mondlane tenham se reunido para declarar cessadas hostilidades, permanece acesa a desconfiança mútua. Para consolidar a paz e fortalecer a democracia, Moçambique precisa de:
- Reformas no órgão eleitoral para garantir transparência.
- Constituição de mecanismos independentes de verificação e denúncia de crimes em manifestações.
- Justiça célere e imparcial para militares e civis, com proteção a defensores de direitos humanos.
- Programas de inclusão socioeconômica para jovens, evitando instrumentalização política.
O futuro de Moçambique depende de ações concretas para romper o ciclo de violência e impunidade. A comunidade internacional, incluindo organizações multilaterais e parceiros de desenvolvimento, tem papel fundamental em apoiar reformas, monitorar direitos humanos e oferecer assistência humanitária. Se esses passos não forem tomados, o risco de novas crises eleitorais e instabilidade continuará alto, ameaçando o progresso social e econômico conquistado nas últimas décadas.
Conclusão
A violência pós‑eleitoral em Moçambique evidenciou fragilidades institucionais e profundas fissuras sociais. Apenas através de reformas estruturais, responsabilização de responsáveis e diálogo genuíno será possível quebrar o ciclo de contestação e repressão, preservando o direito à manifestação e a integridade democrática do país.
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