Ataque ao Hospital Al Mujlad em West Kordofan: Impactos e Raízes de um Conflito Prolongado

Tedros Adhanom Ghebreyesus discursa na inauguração da Academia da OMS em Lyon, França, 17 de dezembro de 2024.
Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, discursa durante a inauguração do campus da OMS Academy, voltado à formação contínua no setor de saúde, em Lyon, França – 17 de dezembro de 2024. (Foto: Laurent Cipriani/Pool via REUTERS)

No fim de semana de 21 de junho de 2025, um bombardeio atingiu o Hospital Al Mujlad, em West Kordofan, deixando mais de 40 mortos — entre eles seis crianças e cinco profissionais de saúde — e provocando danos severos à estrutura do único centro de atendimento avançado na região. À sombra de uma guerra civil que já dura mais de dois anos, o incidente reacende o debate sobre a proteção de civis e a responsabilidade por violações flagrantes do Direito Internacional Humanitário. Este artigo revisita os fatos do ataque, aprofunda as origens do conflito e analisa suas consequências humanitárias e estratégicas.

Contexto do Conflito

Antes de avançar, vamos relembrar os pontos principais do conflito.

  1. Legado de Instabilidade (1956–2019):
    • Desde a independência em 1956, o Sudão passou por 20 tentativas de golpe, ciclos de governos militares e dois conflitos civis de larga escala (1955–1972 e 1983–2005), sem consolidação de instituições democráticas duradouras.
    • A marginalização histórica das regiões periféricas (especialmente Darfur, Kordofan e Sudão do Sul) gerou insurgências e alimentou ressentimentos étnicos, cobrando um pesado tributo humano.
  2. Genocídio em Darfur e Surgimento da RSF (2003–2011):
    • Na década de 2000, milícias Janjaweed, depois reorganizadas como Força de Apoio Rápido (RSF), foram acusadas de genocídio e limpeza étnica contra comunidades não-árabes em Darfur, resultando em mais de 300 mil mortes e 2,5 milhões de deslocados.
    • O sucesso tático dessas milícias reforçou seu poder político e militar, criando um ator autônomo dentro do aparato de segurança sudanês.
  3. Revolução e Golpe Militar (2019–2021):
    • A revolta popular de 2019 derrubou Omar al-Bashir, pondo fim a três décadas de ditadura, mas transitou para um regime híbrido de militares e civis que fracassou em estabilizar o país.
    • Em outubro de 2021, líderes militares — o general Abdel Fattah al-Burhan e o coronel Mohamed Hamdan “Hemeti” Dagalo (comandante da RSF) — deram um novo golpe, dissolvendo a transição e dirimindo as poucas esperanças de uma solução política inclusiva.
  4. Eclosão da Guerra entre SAF e RSF (Abril de 2023):
    • A tentativa de integrar definitivamente a RSF às Forças Armadas regulares (SAF) naufragou em disputas de comando e interesses econômicos, levando a confrontos armados em Cartum e no interior do país a partir de 15 de abril de 2023.
    • Desde então, ofensivas sucessivas rasgaram o tecido social sudanês, alargando fraturas regionais e étnicas e transformando cidades inteiras em zonas de guerra.
  5. Internacionalização e Consequências Humanitárias:
    • Tanto a SAF quanto a RSF contam com tropas estrangeiras e apoio de mercenários, além de armas oriundas de diversos países (China, Rússia, Emirados Árabes, Turquia, entre outros), o que complexifica qualquer mediação externa.
    • O sistema de saúde sudanês foi severamente dilacerado por ataques recorrentes a hospitais, roubos de insumos médicos e bloqueios de rotas de suprimento, gerando surtos de cólera, malária e desnutrição aguda em larga escala.

O Ataque ao Hospital Al Mujlad

  • Data e Local: 21 de junho de 2025, Al Mujlad, capital do condado homônimo em West Kordofan, à beira da linha de frente entre SAF e RSF.
  • Vítimas: Mais de 40 mortos (incluindo seis crianças e cinco profissionais de saúde) e dezenas de feridos, conforme levantamento da OMS. Testemunhas apontam para destruição de alas de internação e do pronto‑socorro.
  • Método: Relatos iniciais diferem — o grupo Emergency Lawyers atribuiu o ataque a um míssil lançado por drone do Exército, enquanto a OMS afirmou não dispor de provas conclusivas sobre o autor.

Responsabilidade e Controvérsias

  • OMS: Direção‑Geral exigiu “cessar imediatamente qualquer ataque a instalações de saúde”, mas não imputou diretamente às partes envolvidas.
  • Emergency Lawyers: Acusou formalmente a SAF de atacar com drone, embora seu primeiro balanço tenha registrado apenas nove mortes, ilustrando as dificuldades de coleta de informações em campo.
  • Fontes Locais: Autoridades de West Kordofan direcionam críticas tanto ao Exército quanto à RSF, cobrando investigações independentes.

Reações Nacionais e Internacionais

  • Nações Unidas (OCHA): Clamor por corredores humanitários e acesso seguro a feridos.
  • Organizações Médicas: Médicos Sem Fronteiras e Rede de Médicos do Sudão lamentam “o contínuo desrespeito ao caráter sagrado das unidades de saúde”.
  • Potências Regionais: União Africana e Liga Árabe instam por um cessar‑fogo imediato, sem avanços práticos até o momento.

Impacto Humanitário

  1. Desabastecimento Médico: Com 80 % dos hospitais de zonas de conflito fora de operação, regiões como West Kordofan dependem de poucas estruturas improvisadas para tratar feridos de guerra.
  2. Deslocamento Forçado: A cada novo ataque na linha de frente, milhar de civis foge em direção a campos de refugiados, já superlotados e com mínimas condições de higiene.
  3. Trauma Psicológico: O terrorismo de baixa intensidade — marcado por ataques a hospitais, escolas e mercados — gera sequelas de longo prazo em sobreviventes, principalmente crianças.

Análise Estratégica

  • Drones e Guerra Assimétrica: A proliferação de veículos aéreos não tripulados em missões de reconhecimento e ataque reforça a assimetria, ampliando a letalidade em áreas civis.
  • Erosão do Direito Internacional Humanitário: A destruição de unidades médicas e o cerco a civis configuram violações graves aos protocolos de Genebra, impelindo debates sobre processos de responsabilização em tribunais internacionais.
  • Ciclo de Retaliações: Cada ataque a instalações básicas catalisa retaliações, inviabilizando prazos de paz e desacreditando mediadores externos.

Perspectivas e Recomendações

  1. Instituir Corredores Humanitários Protegidos: Com escolta de monitoramento neutro, para garantir entrega de ajuda e evacuação de casos graves.
  2. Sanções Direcionadas: Alvo em comandantes militares responsáveis, complementando sanções macro impostas pelo Conselho de Segurança da ONU.
  3. Fortalecimento de Atuação Local: Investimento direto em equipes médicas sudanesas independentes, que atuam mesmo sob risco extremo.
  4. Observação Internacional Ampliada: Missões conjuntas da ONU e da UA com mandato fortalecido para coletar provas e documentar crimes de guerra.

Conclusão

O ataque ao Hospital Al Mujlad é mais um sintoma da degradação profunda que assola o Sudão desde 2023. Além das perdas imediatas de vidas, a ofensiva mina os já frágeis pilares humanitários e reforça um ciclo de violência que mergulha o país em uma crise sem precedentes. Sem um compromisso genuíno das partes beligerantes e uma resposta internacional robusta, episódios como este permanecerão não apenas em manchetes, mas gravados na memória de gerações devastadas pela guerra.

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