Reforma Constitucional no Equador: Caminhos e Controvérsias para a Instalação de Bases Militares Estrangeiras

Daniel Noboa durante posse como presidente do Equador em Quito, maio de 2025.
O presidente do Equador, Daniel Noboa, reage após sua posse para um segundo mandato no Palácio de Carondelet, em Quito, em 24 de maio de 2025. Foto: REUTERS/Karen Toro.

Na terça-feira, 3 de junho de 2025, a Assembleia Nacional do Equador aprovou em segundo turno uma proposta de reforma constitucional que permite a instalação de bases militares estrangeiras em território equatoriano. A proposta, apresentada pelo presidente Daniel Noboa, obteve 82 votos favoráveis, 60 contrários e seis abstenções. Caso confirmada em referendo popular — data ainda a ser definida pelo Conselho Nacional Eleitoral —, a emenda alterará o artigo 5º da Constituição, que desde 2008 caracteriza o país como “território de paz” e proíbe a presença de forças estrangeiras em solo nacional.

O argumento central do governo Noboa é que a cooperação internacional, especialmente com os Estados Unidos, é imprescindível para enfrentar redes de narcotráfico que operam em rotas transnacionais por todo o corredor andino. No entanto, a reforma enfrenta forte resistência de partidos de oposição, organizações sociais e movimentos de defesa de direitos humanos, que questionam tanto a eficácia dessa estratégia quanto seus impactos à soberania nacional e às liberdades civis.

Histórico da Proibição e Fechamento da Base de Manta

O texto constitucional de 2008 consagrou o Equador como “território de paz” e incluiu, em seu artigo 5º, a vedação à instalação de bases militares estrangeiras. Em 2009, o então presidente Rafael Correa decidiu não renovar o acordo que permitia à Força Aérea dos Estados Unidos operar a partir da Base de Manta, inaugurada em 1999 para ações antinarcóticos. Correa justificou o fim do convênio como reafirmação da autonomia equatoriana, ainda que críticos da época já alertassem para a criação de lacunas na segurança aérea e marítima do país, que passaria a depender unicamente dos meios locais para interceptar voos suspeitos e patrulhar rotas costeiras. Até hoje, especialistas em defesa salientam que, após esse encerramento, o Equador não conseguiu substituir totalmente a capacidade de monitoramento aéreo que a presença americana disponibilizava.

Motivação do Governo Noboa para a Reforma

Daniel Noboa assumiu o mandato completo em 24 de maio de 2025, depois de vencer eleições marcadas por intenso debate sobre segurança pública. Desde então, tem afirmado que as Forças Armadas e as polícias equatorianas não dispõem de recursos tecnológicos, inteligência e treinamento suficientes para combater com eficácia organizações transnacionais de narcotráfico que utilizam rotas terrestres, fluviais e aéreas pelo território.
Em vídeo gravado nas instalações da antiga Base de Manta, Noboa declarou que o fechamento em 2009 transformou o país em “um refúgio para barões das drogas” e que a retomada da parceria com os EUA visa recuperar o controle do espaço aéreo e marítimo, além de promover intercâmbio de inteligência e apoio logístico.
Fontes próximas ao presidente revelaram que, em março de 2025, diplomatas equatorianos mantiveram conversas informais com aliados do ex-presidente americano Donald Trump, que incluiram o empresário Erik Prince (ex-Blackwater) como consultor em estratégias antinarcóticos, embora detalhes dessas negociações não tenham sido divulgados oficialmente.
Ainda que o governo busque foco na cooperação militar, o Escritório do Departamento de Estado dos EUA afirmou, em comunicado de setembro de 2024, que não há planos de requisitar autorização para instalação de base permanente no Equador, mas que permanecerá aberto a ampliar treinamentos conjuntos, aporte de equipamentos e ações de patrulha coordenada.

Tramitação Legislativa e Caminho para o Referendo

Primeira e Segunda Votação na Assembleia

Em outubro de 2024, o presidente Noboa encaminhou ao Legislativo o projeto de emenda ao artigo 5º, após obtenção de parecer favorável do Tribunal Constitucional. A proposta foi debatida pela Comissão Ocasional, retornou ao plenário em fevereiro de 2025 para o primeiro debate e, depois de intensas negociações políticas, foi remetida novamente à Comissão para ajustes finais.
Com a posse da nova legislatura em 14 de maio de 2025, a bancada do movimento Revolução Ciudadã (RC) assumiu a liderança da oposição dentro da comissão, o que adiou o cronograma para que o texto retornasse ao plenário. Em 3 de junho de 2025, no segundo turno, a proposta recebeu 82 votos a favor, 60 contra e seis abstenções. Estiveram ausentes mortos-vivos e ausências justificadas que não alteraram o quórum mínimo exigido.

Referendo Popular

Conforme a Constituição, qualquer emenda que modifique cláusulas pétreas — como o artigo que declara o país “território de paz” — deve ser submetida a um referendo. Cabe ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE) definir o calendário, prazo de realização e logística da votação. Até o momento, o CNE não marcou data, mas fontes internas indicam que o plebiscito poderá ocorrer apenas em setembro ou outubro de 2025, a depender da preparação das urnas eletrônicas e circulação de informações aos eleitores.
Para ser aprovada, a reforma precisa obter maioria simples dos votos válidos. O resultado refletirá não apenas o debate sobre segurança, mas também as visões divergentes acerca de soberania, direitos humanos e prioridades orçamentárias.

Argumentos dos Defensores da Reforma

  1. Aprimoramento de Inteligência e Vigilância:
    • Relatórios internos das Forças Armadas apontam que, sem apoio externo, a capacidade de rastrear voos de carga aérea suspeitos e operações nocturnas de embarcações costeiras permanece limitada. A presença de tecnologias avançadas e radares de longo alcance, aliados à cooperação americana, elevariam a capacidade de interdição em rotas marítimas entre Colômbia e Peru.
    • Oficiais do alto escalão militar equatoriano assinalam que a troca de informações de inteligência com agências como a DEA (Drug Enforcement Administration) e o Departamento de Defesa dos EUA facilitaria a desarticulação de laboratórios de processamento de cocaína e o monitoramento de redes financeiras do narcotráfico.
  2. Treinamento e Capacitação das Tropas Locais:
    • O acordo pode contemplar envio de instrutores americanos para capacitar unidades da Polícia Nacional e exércitos regionais na aplicação de técnicas de combate a cartéis e grupos armados.
    • Haveria transferência de equipamentos de ponta (drones de vigilância, sistemas de interceptação e comunicadores criptografados) que ainda não existem em escala suficiente nas Forças Armadas equatorianas.
  3. Efeito Disuasório e Recuperação de Soberania Efetiva:
    • Defensores argumentam que sinalizar aos cartéis que o Equador conta com o respaldo de uma potência militar dissuade ações criminosas, reduzindo o fluxo de contrabandos e tráfico de armas.
    • Ressalta-se que, na prática, a soberania equatoriana seria reforçada por meio de maior controle das fronteiras, em vez de ficar subordinada a uma retórica isolacionista, alegando que “sem capacidade de interceptar aeronaves suspeitas, a nação fica submetida à lei do crime organizado”

Principais Críticas e Questões da Oposição

  1. Soberania e Autonomia Nacional:
    • Movimentos sociais, ONGs e a bancada da Revolução Cidadã argumentam que a presença de militares estrangeiros resultaria em concessões jurídicas — por exemplo, a aplicação de um Estatuto de Forças (Status of Forces Agreement) que garante imunidades a tropas americanas, limitando a jurisdição equatoriana sobre eventuais casos de abusos ou delitos.
    • Parlamentares do Pachakutik e líderes indígenas afirmam que o artigo 5º da Carta Magna foi incluído para evitar justamente “influências hegemônicas” que possam comprometer decisões soberanas sobre políticas públicas e exploração de recursos naturais.
  2. Eficácia Questionável em Redução de Criminalidade:
    • Especialistas em segurança pública indicam que a militarização não atua sobre as causas estruturais da violência, como pobreza, desemprego e fragilidade institucional. Pesquisas de abril de 2025 apontam que 55% dos equatorianos acreditam que a reforma não resolverá o problema a longo prazo, enquanto 40% consideram prioritário investir em educação, saúde e fortalecimento de instituições de investigação criminal.
    • Há precedentes na América Latina (por exemplo, Honduras e Colômbia) em que bases estrangeiras reduziram alguns indicadores de tráfico, mas não promoveram desenvolvimento social sustentável, gerando críticas sobre o custo-benefício dessas operações.
  3. Impacto Orçamentário e Desvio de Recursos:
    • Oposição sustenta que os recursos públicos destinados à adaptação de bases — modernização de infraestrutura, construção de hangares e áreas de convivência — poderiam ser revertidos em reforço de policiamento comunitário, construção de delegacias e contratação de investigadores especializados.
    • Organizações de defesa de direitos humanos enfatizam que, historicamente, intervenções militares estrangeiras na região não priorizaram a proteção de populações vulneráveis nem a promoção de medidas de prevenção social. Em muitos casos, aumentaram tensões com comunidades locais e agravaram violações de direitos civis.

Implicações Geopolíticas para a América do Sul

  1. Coordenação Regional no Combate ao Narcotráfico:
    • Localizado entre Colômbia e Peru, o Equador é passagem obrigatória para cargas de cocaína que seguem de laboratórios andinos a portos do Pacífico. A inclusão de bases estrangeiras pode fortalecer ações conjuntas de interdição com Forças Armadas colombianas e peruanas, promovendo patrulhas integradas em alto mar e compartilhamento de inteligência de inteligência financeira.
    • Autoridades colombianas, embora alinhadas conceitualmente ao combate ao narcotráfico, observam com cautela para que as bases não provoquem deslocamento das rotas de tráfico para dentro de seus territórios, o que poderia sobrecarregar a já complexa situação nas zonas de fronteira.
  2. Reações de Vizinhos e Blocos Regionais:
    • Venezuela e Bolívia — regimes que historicamente criticam o expansionismo militar dos EUA na América Latina — devem emitir declarações de desaprovação, interpretando a reforma como alinhamento político de Quito ao bloco ocidental.
    • O Brasil, que mantém em sua Constituição a proibição de bases militares estrangeiras, tende a reafirmar sua política de não intervenção e não-alinhamento militar, podendo reforçar mecanismos diplomáticos no Mercosul e na Unasul, pedindo que negociações envolvendo força militar ocorram sob critérios de transparência e respeito à soberania.

Cenário Eleitoral e Opinião Pública

Divisão de Opinião

Pesquisas de opinião de abril e maio de 2025 apontam que a pauta de segurança ganhou centralidade na campanha de Noboa, que promete “intervenção imediata” para frear a escalada de violência urbana e rural. Enquanto isso, movimentos estudantis, indígenas e partidos de esquerda mobilizam debates públicos, seminários e manifestações em praças centrais de Quito, Guayaquil e Cuenca, em caráter pacífico, para conscientizar a população sobre riscos à autonomia equatoriana.

Estratégias de Campanha para o Referendo

  • Governo Noboa:
    • Investirá em publicidade estatal em rádios comunitárias e TVs regionais, destacando estatísticas de apreensões recentes de drogas e melhora pontual em indicadores de criminalidade, atribuindo esses resultados a operações conjuntas com forças internacionais.
    • Realizará fóruns nos principais municípios, envolvendo autoridades militares, policiais e governadores provinciais, com o objetivo de aproximar o cidadão da lógica de “segurança imediata”.
  • Oposição e Sociedade Civil:
    • Bancadas do Pachakutik e RC promoverão caravanas de âmbito nacional para apresentar estudos de impacto, painelistas acadêmicos e representantes de comunidades ribeirinhas que podem ser afetadas pela presença militar em áreas costeiras e ilhas (por exemplo, nas proximidades do Parque Nacional Galápagos).
    • Campanhas digitais em redes sociais (Instagram, TikTok, X) reforçarão mensagens de “soberania ameaçada” e de “recursos desviados”, exibindo gráficos comparativos sobre alocação orçamentária em segurança versus investimentos sociais

Perspectivas Futuras e Desafios

  1. Possíveis Cenários Após o Referendo:
    • Aprovação: abertura imediata de negociações para adaptação de pelo menos uma base (possivelmente reativação parcial em Manta ou construção de nova infraestrutura). Prevê-se uso escalonado, iniciando por missões de treinamento e patrulha conjunta, antes de implantação de contingente permanente.
    • Rejeição: manutenção do status quo constitucional, forçando o governo a repensar estratégias internas de combate ao narcotráfico. A oposição pode capitalizar o resultado como vitória simbólica, pressionando por outros projetos de segurança pública.
  2. Desafios Logísticos e Jurídicos:
    • Ajustar legislações nacionais para compatibilizar normas de trânsito de militares estrangeiros, procedimentos aduaneiros para equipamentos, e definições de zonas de operações que respeitem áreas de proteção ambiental.
    • Superar resistências judiciais: eventuais ações de controle de constitucionalidade podem ser ajuizadas por entidades civis antes do plebiscito, questionando legalidade de cláusulas específicas sobre imunidades e delimitação de jurisdição.
  3. Impacto na Coesão Social:
    • A polarização em torno da reforma pode intensificar tensões entre comunidades rurais vulneráveis e zonas urbanas que demandam maior patrulhamento.
    • Projetos de inclusão social — programas de emprego jovem, fortalecimento de conselhos comunitários e políticas de redução da pobreza — podem ganhar tração caso a reforma seja rejeitada, pressionando governos locais a entregar resultados mais “visíveis” que uma base militar estrangeira.

Conclusão

A decisão da Assembleia Nacional de encaminhar ao referendo a possibilidade de autorizar bases militares estrangeiras representa um divisor de águas na política de segurança e soberania do Equador. Ao abrir espaço para a cooperação militar internacional, o país se reposiciona no tabuleiro geopolítico andino e sinaliza disposição para adotar medidas mais contundentes contra o narcotráfico. Contudo, a controvérsia sobre a eficácia de uma estratégia militarizada e os riscos à autonomia nacional mantêm as tensões acesas.
Nas próximas semanas, à medida que o Conselho Nacional Eleitoral fixe a data do plebiscito, o embate entre as narrativas de “segurança imediata” e “soberania e desenvolvimento social” se intensificará, testando não apenas as decisões de políticos e militares, mas sobretudo a vontade popular em definir que modelo de Estado e de futuro desejam para o Equador.

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