
Desde a deposição de Bashar al-Assad, em 9 de dezembro de 2024, a Síria vive um experimento econômico inédito. Sob o governo dos ex-rebeldes do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), o país assiste a um choque de modelos: de um regime protecionista e centralizado para uma economia de mercado aberto, com tensões crescentes entre as antigas áreas governistas (como Damasco) e o novo núcleo econômico de Idlib.
Duas realidades econômicas
Região | Modelo sob Assad | Modelo sob HTS | Impacto principal |
---|
Damasco e entorno | Protecionismo e cronyismo | Abertura sem proteção industrial | Quebra de empresas estabelecidas; desemprego |
Idlib e fronteira | Bloqueios e escassez | Livre-importação via Turquia | Explosão de comércio; duplicação de vendas |
- Damasco: empresários como Haytham Joud veem seu faturamento cair cerca de 70%, vítimas da concorrência de importadores idlibitas e da perda de poder de compra da população.
- Idlib: Mohammad al-Badawi dobrou as vendas de refrigerantes importados da Turquia, aproveitando a aceitação de lira turca e dólar, eletricidade estável e internet rápida pela rede local.
A engenharia do poder econômico pelo HTS
Centralização político-econômica
- Nomeação de aliados em ministérios-chave;
- Shamcash, app ligado ao HTS, paga salários públicos (ainda não cumpriu o prometido aumento de 400% em Damasco).
Redefinição de redes de favorecimento
- Fiscalização de empresas com supostos vínculos ao regime Assad, buscando “compensações” e renegociação de dívidas;
- Incentivo a novos players em Idlib, sem tarifas elevadas, atraindo investimentos e agentes comerciais.
Análise de Impacto para a População Comum
- Custo de vida: A abertura econômica levou à importação de produtos a preços competitivos em Idlib, mas elevou o custo de itens básicos em Damasco, onde a inflação do preço do pão e dos combustíveis ultrapassou 50% nos últimos quatro meses.
- Escassez de essenciais: Famílias em Damasco enfrentam falta de medicamentos e produtos alimentícios básicos. Clínicas relatam faltas de antibióticos e insulina; mercearias, ausência de farinha de trigo subsidiada, forçando compras no mercado negro a preços até cinco vezes superiores.
- Poder de compra: O salário médio público em Damasco equivale hoje a menos de 20 USD mensais, contra cerca de 80 USD em Idlib, ampliando a desigualdade no consumo de serviços de saúde e educação.
Avaliação das Consequências de Longo Prazo
- Polarização social: A disparidade de renda e serviços entre regiões pode cristalizar divisões étnicas e sectárias, minando a coesão nacional.
- Classe média: Sem políticas de capacitação, os jovens em áreas afetadas podem migrar ou se engajar em economias informais, retardando a formação de uma classe média sustentável.
- Educação e treinamento: Programas de formação técnica e de empreendedorismo serão cruciais para reintegrar ex-combattentes e desempregados, fortalecendo indústrias locais e diversificando a economia.
Desafios Ambientais
- Crise hídrica: A infraestrutura de irrigação está destruída em mais de 60% das fazendas, reduzindo a produção agrícola e elevando o preço de frutas, legumes e arroz em até 70%.
- Recuperação agrícola: A reconstrução de barragens e canais exige investimentos que hoje concorrem com gastos emergenciais em segurança e serviços urbanos.
- Sustentabilidade: Sem gestão integrada de recursos, a expansão do livre-mercado pode acelerar a exploração predatória de água e solo, agravando a desertificação.
Citação de Testemunhos Pessoais
- Rania, mãe de três em Damasco: “Antes, eu pagava 1 USD por um quilo de farinha; agora, pago 5 USD e ainda encontro prateleiras vazias. Meus filhos vão à escola de manhã sem café da manhã.”
- Omar, pequeno comerciante em Idlib: “Com o livre mercado, comprei novas geladeiras e ampliei meu mercadinho. Mas temo que, se as tarifas mudarem, eu perca essa vantagem.”
- Lina, professora de agricultura: “Sem água, não há colheita. Voltamos a métodos manuais e poços comunitários, mas é insuficiente para alimentar nossas famílias.”
Conclusão
A Síria pós-Assad vive um experimento de liberalização em meio a escombros políticos, sociais e ambientais. O dinamismo de Idlib revela o potencial de um mercado aberto, mas também expõe riscos de fragmentação, desigualdade e degradação dos recursos. O êxito da reconstrução dependerá de um equilíbrio entre mercado livre e intervenção estratégica do Estado—incluindo políticas de proteção industrial, programas de capacitação, gestão ambiental e coesão social—para unir as duas Sírias num projeto econômico inclusivo e sustentável.


Faça um comentário