
Num mundo onde a ciência se tornou vetor de influência geopolítica e disputa por hegemonia tecnológica, a capacidade de um país transformar conhecimento em poder — econômico, diplomático e militar — é mais relevante do que nunca.
Num mundo marcado por rápidas transformações tecnológicas, dinâmicas geopolíticas fluidas e urgência por crescimento econômico sustentável, a Investigação e Desenvolvimento (I&D) emerge como o principal motor de competitividade e influência global. Publicada em 27 de junho de 2025, a nova Estratégia Industrial do Reino Unido reconhece este contexto estratégico: para manter seu soft power e estimular produtividade, é essencial converter a excelência científica britânica em valor econômico e diplomático. Para tornar essa visão realidade, o governo deve focar em três pilares: investimento estratégico em ciência de descoberta, integração inteligente de polos regionais e ampliação de parcerias internacionais.
R&D como prioridade nacional e instrumento de soft power
O Reino Unido detém uma parcela desproporcional de excelência acadêmica: embora represente apenas 0,8 % da população global, seus pesquisadores são responsáveis por 12 % dos artigos mais citados no mundo, segundo a Clarivate Analytics (Global Research Report, 2024). Além disso, quatro universidades britânicas figuram entre as 10 melhores do mundo no QS World University Rankings 2025. No campo tecnológico, o país conta com um ecossistema avaliado em US$ 1,3 trilhão (Tech Nation Report, 2024), que cresceu quase 10 % desde 2023, posicionando-se atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
Historicamente, o Reino Unido já utilizou a ciência como ferramenta de diplomacia: no pós-Segunda Guerra, os projetos de cooperação nuclear com a Commonwealth fortaleceram laços estratégicos e tecnológicos. A fundação do CERN em 1954, com forte participação britânica, também exemplifica como o país usou a ciência para reconstruir a confiança europeia e exercer liderança multilateral. Já nas décadas seguintes, a colaboração em programas como o ITER (energia nuclear de fusão) e o European Molecular Biology Laboratory consolidou a diplomacia científica como vetor de influência britânica.
Hoje, ao dominar áreas como IA, genômica e hidrogênio verde, o país não só amplia sua vantagem econômica, mas também molda normas e regulamentos globais — reforçando sua influência na governança de tecnologias emergentes.
Investir de forma inteligente em ciência de descoberta
Restabelecer o financiamento QR
O financiamento Quality-Related (QR) é uma modalidade central do sistema britânico de apoio à pesquisa. Trata-se de dotações trienais distribuídas às universidades com base em avaliações periódicas de qualidade científica (ex. Research Excellence Framework), o que oferece estabilidade e flexibilidade às instituições para explorarem linhas de investigação de longo prazo e alto risco — diferentemente dos financiamentos vinculados a projetos específicos.
O modelo britânico combina:
- Project Grants (via UKRI): financiamentos atrelados a propostas específicas.
- Quality‑Related (QR) Funding: dotações baseadas em excelência, que garantem liberdade acadêmica e continuidade de equipes de pesquisa entre ciclos de projetos.
Foi do QR que nasceram descobertas como o grafeno e avanços em terapias oncológicas. No entanto, cortes reais de 16 % desde 2010 e inflação de 12 % no custo de pesquisa desde 2020 enfraqueceram essa base. Com o compromisso de aumentar o investimento em I&D para £ 22,6 bi até 2029–30, realocar parte desses recursos ao QR é crucial para manter a capacidade de inovação de longo prazo.
Em comparação, os Estados Unidos adotam modelos semelhantes, como os NIH Pioneer Awards — que financiam cientistas com ideias disruptivas — e os programas da DARPA, voltados para inovação radical com alto risco tecnológico. Já o Japão opera o ambicioso programa Moonshot R&D, com metas nacionais para tecnologias transformadoras até 2050. Esses modelos mostram como países líderes usam financiamento estável e flexível como base de sua competitividade científica.
Focar em missões estratégicas
Em abril de 2025, o governo lançou o programa Innovation Accelerating Missions, inspirado no modelo “Moonshot” dos EUA, com missões dedicadas a Saúde Global, Net Zero e Resiliência Digital. Cada missão recebe até £ 150 milhões, unindo universidades e indústria em projetos com prazos e indicadores claros. Por exemplo, a missão Net Zero já financia testes-piloto de captura de carbono em Sheffield, que reduziram emissões industriais em 15 % no primeiro semestre de 2025.
Conectar e potencializar clusters regionais
Do Oxford–Cambridge Corridor à “Tech City”
O Reino Unido possui quatro grandes polos de inovação:
- Oxford–Cambridge Corridor (biotecnologia);
- Tech City, Londres (IA e fintech);
- Clúster de computação quântica, Glasgow;
- Materiais avançados, Manchester e noroeste.
Embora estes polos motivem investimentos locais, ainda funcionam como ilhas isoladas. A Estratégia propõe consolidá-los num ecossistema nacional, promovendo intercâmbio de talentos e infraestrutura compartilhada.
O HS2, ferrovia de alta velocidade que ligará Londres a Birmingham e Manchester em 2035, reduzirá o tempo de deslocamento entre esses centros para menos de uma hora, facilitando colaborações presenciais. Paralelamente, o National Digital Fibre Programme (maio/2025) visa levar banda larga de 1 Gbps a 95 % das empresas de pesquisa até 2027, eliminando gargalos digitais.
Desburocratizar a comercialização
A transição “bench-to-market” ainda sofre com processos regulatórios longos e falta de capital de escala. O Regulatory Innovation Office (janeiro/2025) promete agilizar aprovações, mas precisa de mecanismos adaptativos e uma ponte direta com fundos de venture capital — nacionais e estrangeiros — para que as scale-ups consigam crescer no próprio Reino Unido.
Colaboração internacional como força multiplicadora
O reingresso ao Horizon Europe (2024) reconectou empresas e universidades britânicas a 37 países europeus, resultando em 1.200 acordos e € 8 bi financiados até março de 2025. Um caso de sucesso foi o projeto “Quantum Flagship UK”, que uniu Cambridge, CNRS (França) e TU Delft (Holanda) para desenvolver sensores quânticos aplicados à saúde.
Além da UE, a International Science Partnerships Fund deve estreitar parcerias com membros da Commonwealth — como Austrália e Canadá — e potências emergentes de P&D (Japão, Índia, Coreia do Sul). Programas de intercâmbio de pesquisadores e laboratórios conjuntos permitirão diversificar riscos e escalar descobertas.
Desafios e riscos futuros
Concorrência: EUA, China, Israel e Coreia do Sul elevam seus gastos em I&D anualmente — e disputam nichos de alta complexidade.
Orçamento: pressões de austeridade podem comprometer o QR a longo prazo; coordenação entre Tesouro e Ministério da Ciência será decisiva.
Talentos: pós-Brexit, restrições de visto ameaçam o fluxo de pesquisadores internacionais.
Governança de dados e cibersegurança: à medida que a colaboração transnacional aumenta, proteger propriedade intelectual e dados sensíveis torna-se crítico.
Conclusão: da ambição à ação
A Estratégia Industrial de junho de 2025 oferece uma rota clara: pesquisa de ponta, clusters integrados e parcerias globais. Mas visão sem execução falha. O Reino Unido precisa:
- Reforçar o QR Funding, garantindo ciência exploratória.
- Conectar seus polos via HS2 e redes digitais de alta capacidade.
- Desburocratizar a inovação, aproximando reguladores e investidores.
- Fortalecer parcerias internacionais, incluindo a Commonwealth.
Como disse Sir Isaac Newton, em 1668, ao transformar a óptica matemática em lentes práticas: “O que sabemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano.” Hoje, a próxima era de prosperidade britânica depende de navegar nesse oceano de descobertas — e fazê-lo com estratégia e agilidade.
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