
Na esteira de uma escalada de atritos na região da Caxemira e de incidentes transfronteiriços, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, intensificou seus contatos diplomáticos nesta terça-feira (29 de abril de 2025), falando separadamente com o primeiro-ministro paquistanês, Muhammad Shehbaz Sharif, e com o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, segundo declaração oficial de porta-voz da organização.
Contexto das Tensões
Desde o fim de março de 2025, observadores internacionais registram um aumento de trocas de tiros e ataques aéreos na Linha de Controle (LoC) que divide a Caxemira administrada pela Índia da porção sob controle paquistanês. Relatórios de ONGs de direitos humanos apontam para pelo menos 45 civis mortos e centenas de deslocados internos em ambas as margens do vale desde então.
- Incidente mais recente: em 26 de abril, um posto de vigilância indiano foi atingido por morteiros, resultando em três soldados feridos, segundo comunicado do Exército Indiano.
- Retaliação: Islamabad acusou Nova Délhi de violar o cessar-fogo de 2003, abrindo fogo de artilharia contra vilarejos em Azad Caxemira.
Esse ciclo de ação e reação reacende antigas rivalidades que, historicamente, já levaram a três guerras abertas (1947, 1965 e 1971) e a crises nucleares em 1999 e 2001.
Intervenção da ONU: “Boas Oficinas” para Desescalada
Em sua conversa com Shehbaz Sharif, Guterres expressou “profunda preocupação” com o aumento das hostilidades e ofereceu as “Boas Oficinas” do Secretário-Geral – mecanismo de mediação confidencial previsto na Carta da ONU – para facilitar o diálogo entre os dois governos.
À Subrahmanyam Jaishankar, o Secretário-Geral reiterou a necessidade de evitar confrontos que poderiam gerar “consequências trágicas não apenas para a região, mas para a estabilidade global” e colocou à disposição da Índia o apoio técnico e político da ONU em iniciativas de confiança mútua.
Importância das “Boas Oficinas”
As “Boas Oficinas” consistem em:
- Canal de diálogo sigiloso – Permite que as partes exponham demandas e receios sem pressão pública.
- Envio de enviados especiais – Diplomatas de alto nível podem atuar como facilitadores.
- Apoio de agências da ONU – Aspectos humanitários e de monitoramento de fronteira podem ser supervisionados por organismos como UNMOG (Missão de Observação Militar).
Essa abordagem já foi empregada com sucesso em crises como o acordo nuclear iraniano (2015) e no processo de paz colombiana (2016).
Possíveis Consequências de um Conflito Prolongado
Uma guerra prolongada entre Índia e Paquistão — ambos Estados nucleares — teria repercussões profundas em várias dimensões:
- Econômica:
- Mercados globais sofreriam forte volatilidade no preço de commodities, especialmente petróleo e gás, devido ao aumento do risco geopolítico no Sul da Ásia.
- Investimento estrangeiro direto (IED) cairia na região, à medida que empresas reavaliassem riscos de operar perto de um possível teatro de guerra nuclear.
- Social:
- Crise de refugiados: milhões poderiam atravessar fronteiras para buscar segurança, gerando pressão sobre países vizinhos e sobre o próprio Paquistão e Índia.
Colapso de serviços públicos em áreas de conflito, com impacto em saúde, educação e infraestrutura básica. - Geopolítica
- Realinhamento de alianças: potências como China, EUA e Rússia teriam de escolher lados ou mediar, alterando dinâmicas de blocos como QUAD e SCO (Organização de Cooperação de Xangai).
- Risco de proliferação nuclear: outros países da região poderiam buscar armas nucleares como “dissuasão”, aumentando o risco global.
- Direitos Humanos:
- A Anistia Internacional e a Human Rights Watch(Observatório de Direitos Humanos) já alertaram para riscos de violações em massa, incluindo crimes de guerra e limpeza étnica em zonas contestadas, caso o conflito se expanda sem controle.
Soluções e Exemplos de Sucesso em Processos de Mediação Anteriores
Para entender o que poderia funcionar na mediação Índia-Paquistão, vale observar casos na Ásia:
Conflito | Mediação / Processo | Resultado | Lições |
---|
Acordo Nuclear Iraniano (2015) | Boas Oficinas da ONU e P5+1 | Redução parcial de sanções e restrições ao programa nuclear | Importância de garantias mútuas e revisões periódicas |
Processo de Paz no Sri Lanka (2002–06) | Noruega como mediador | Ceasefire e negociações diretas, embora temporárias | Necessidade de acompanhamento local contínuo |
Negociações Nepal-Índia (1950–51) | Tratado de Paz e Amizade | Estabeleceu relações diplomáticas e comerciais | Valor de acordos formais bem detalhados |
Em cada caso, elementos-chave foram:
- Mediador neutro com credibilidade regional (Noruega no Sri Lanka; ONU no Irã).
- Mecanismos de verificação claros (inspeções internacionais).
- Incentivos econômicos atrelados ao cumprimento de fases do acordo.
Essas lições podem ser adaptadas para a crise da Caxemira, combinando mediação sigilosa com incentivos políticos e humanitários graduais.
Reações Regionais e Internacionais
- Paquistão: declarou-se “receptivo” à mediação da ONU, segundo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores em Islamabad. Autoridades paquistanesas cobram, porém, maior pressão internacional sobre a Índia para respeitar o direito internacional humanitário.
- Índia: mantém discurso de auto-defesa e afirma que quaisquer negociações dependem da cessação prévia de ataques transfronteiriços por Islamabad.
- EUA e UE: instaram ambas as partes ao recato e ao uso de canais diplomáticos, endossando o papel da ONU como mediadora imparcial.
Cenário Humanitário
ONGs locais e internacionais alertam para:
- Deslocados internos: cerca de 10 000 pessoas forçadas a sair de suas casas em abril, segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR).
- Acesso a serviços: cortes de eletricidade e telecomunicações em zonas de conflito dificultam o fornecimento de ajuda médica e suprimentos básicos.
A ONU considera urgente um corredor humanitário monitorado por suas agências para atender civis afetados, medida que também pode servir de primeiro passo para reconstruir confiança entre Nova Délhi e Islamabad.
Desafios à Mediação
- Desconfiança histórica: décadas de confrontos e incidentes de espionagem minam a credibilidade de qualquer processo.
- Pressão política interna: nacionalistas em ambos os países veem concessões como fraqueza.
- Dimensão nuclear: o arsenal de ambos impõe um risco sistêmico, elevando o custo de um possível erro de cálculo.
Conclusão
A iniciativa de António Guterres para oferecer as “Boas Oficinas” da ONU surge num momento crítico em que a escalada militar pode facilmente sair do controle e desencadear uma crise de proporções continentais. A eficácia dessa mediação dependerá da disposição de Índia e Paquistão em priorizar o diálogo sigiloso sobre a retórica pública e em aceitar supervisão internacional, ainda que limitada, nos setores humanitário e de segurança.
Enquanto isso, a comunidade internacional, sobretudo potências e blocos regionais, desempenha papel-chave ao pressionar por contenção e ao oferecer incentivos políticos e econômicos para manter abertas as linhas de comunicação. O próximo passo prático seria o estabelecimento de um mecanismo coordenado de verificação de cessar-fogo, possivelmente liderado pela UNMOG, acompanhado de um plano de assistência humanitária imediato para as populações mais vulneráveis.
Faça um comentário