
O cenário político do Oriente Médio pode estar diante de uma inflexão histórica. Em declarações recentes, Naim Qassem, líder do Hezbollah, indicou disposição para abrir “uma nova página” nas relações com a Arábia Saudita, sugerindo que inimigos tradicionais poderiam se aproximar em nome de um objetivo comum: conter Israel. A proposta, ainda embrionária, traz implicações profundas para a dinâmica regional, envolvendo não apenas Riad e Beirute, mas também Teerã, Washington e outros atores estratégicos.
Histórico de tensões entre Hezbollah e Arábia Saudita
O Hezbollah, grupo xiita libanês apoiado pelo Irã, e a Arábia Saudita, potência sunita e berço do wahhabismo, sempre estiveram em campos opostos. Riad acusa a organização libanesa de desestabilizar governos árabes, apoiar milícias em diferentes frentes e atuar como braço armado de Teerã.
Estima-se que o Hezbollah conte hoje com cerca de 100 mil a 150 mil combatentes, além de um vasto arsenal de foguetes e mísseis, o que o transforma em uma das forças não estatais mais poderosas do mundo. Esse poder militar sempre foi visto por Riad como uma ameaça à estabilidade regional.
Ao longo da guerra civil síria, a rivalidade se acentuou: enquanto o Hezbollah combatia em defesa do governo de Bashar al-Assad, os sauditas apoiavam facções rebeldes. No Líbano, a influência política do Hezbollah foi outro ponto de atrito, com Riad frequentemente apoiando facções rivais e pressionando economicamente o país. Vale lembrar que, historicamente, a Arábia Saudita foi um dos principais financiadores do Líbano, especialmente em momentos de crise econômica.
Essa distância refletia a disputa maior entre Irã e Arábia Saudita, que transformou o Oriente Médio em palco de uma guerra por procuração. Assim, a possibilidade de aproximação sugere não apenas uma mudança tática, mas também o reconhecimento de que o equilíbrio regional pode estar em transição.
O fator Israel: catalisador de novos alinhamentos
A proposta de Qassem ocorre em um momento em que Israel intensifica suas ações militares, não apenas em Gaza e no sul do Líbano, mas também em países como Síria e Iêmen. O recente ataque aéreo em Sana’a, que matou jornalistas em um complexo de mídia ligado aos Houthis, gerou condenações e ampliou a narrativa de que Israel estaria expandindo seu raio de operações.
Nesse contexto, o Hezbollah busca construir uma frente mais ampla contra Israel, que inclua países que até pouco tempo eram seus rivais. Para o grupo, alinhar-se com Riad teria dois efeitos imediatos: isolar Tel Aviv e pressionar Washington, principal aliado israelense, a rever sua estratégia na região.
O cálculo saudita
Do lado da Arábia Saudita, a equação é delicada. O reino, sob a liderança de Mohammed bin Salman (MBS), vem perseguindo uma política externa pragmática. Após anos de tensões com o Irã, Riad restabeleceu relações diplomáticas com Teerã em 2023, mediadas pela China. Esse movimento abriu espaço para conversas mais amplas sobre segurança regional.
Para os sauditas, considerar algum nível de entendimento com o Hezbollah pode ser uma forma de reforçar sua imagem como mediador regional e reduzir riscos de instabilidade interna, sobretudo diante de ataques com drones e mísseis que já atingiram seu território em conflitos passados. Porém, qualquer passo nessa direção terá de equilibrar cuidadosamente sua aliança com os EUA e seus planos de modernização interna, ancorados no projeto Visão 2030.
Impacto econômico e energético
Uma possível aproximação entre Hezbollah e Arábia Saudita também teria reflexos econômicos. O Líbano, em grave colapso financeiro desde 2019, poderia se beneficiar de investimentos sauditas ou de uma retomada do apoio econômico de Riad, que historicamente foi crucial para sua reconstrução e estabilidade.
No mercado global de energia, a hipótese de maior alinhamento entre atores ligados ao Irã e à Arábia Saudita poderia influenciar a OPEP+ e gerar pressões sobre os preços do petróleo. Para investidores internacionais, esse cenário seria ambíguo: de um lado, poderia indicar maior estabilidade regional; de outro, poderia aumentar a incerteza diante de uma frente mais ampla contra Israel, potencialmente elevando riscos de conflitos militares.
O papel do Irã
Nenhuma movimentação envolvendo o Hezbollah pode ser entendida sem olhar para Teerã. O grupo libanês é peça central da estratégia iraniana de “profundidade defensiva”, que se estende do Golfo Pérsico ao Mediterrâneo.
Se a Arábia Saudita aceitar algum tipo de diálogo com o Hezbollah, o Irã teria uma dupla vitória: neutralizaria parte da hostilidade saudita e ampliaria a rede de pressão sobre Israel. Por outro lado, Teerã precisaria administrar o risco de enfraquecer sua narrativa sectária, que sempre apresentou Riad como antagonista.
Reações internas
Dentro do Líbano, a possibilidade de aproximação com a Arábia Saudita divide opiniões. Setores ligados ao Hezbollah aplaudem a iniciativa como uma oportunidade de aliviar o isolamento diplomático e econômico do país. Já críticos internos veem a proposta com ceticismo, alertando que isso poderia legitimar ainda mais a presença armada do grupo na política libanesa.
Na Arábia Saudita, analistas próximos ao governo destacam a conveniência estratégica de abrir canais de comunicação, mas parte da elite política e religiosa considera a aproximação uma contradição, dada a longa história de hostilidade e as acusações de terrorismo atribuídas ao Hezbollah.
Repercussões internacionais
Os Estados Unidos e Israel observam com preocupação qualquer aproximação entre Hezbollah e Arábia Saudita. Washington teme que isso comprometa sua rede de alianças tradicionais no Golfo, enquanto Tel Aviv vê a possibilidade de uma frente mais coordenada contra si como um risco existencial.
Já a China, que tem se posicionado como mediadora alternativa no Oriente Médio, poderia capitalizar essa aproximação como prova de sua capacidade de moderar rivalidades históricas. A Rússia, envolvida em diferentes frentes na região, também poderia apoiar a ideia como forma de desafiar a influência ocidental.
Perspectivas
Ainda é cedo para prever se o gesto de Naim Qassem terá consequências práticas. Reaproximações no Oriente Médio costumam ser testadas lentamente, entre recuos e avanços, e muitas vezes servem como instrumentos de pressão em negociações maiores.
No entanto, o simples fato de o Hezbollah declarar abertura ao diálogo com a Arábia Saudita já representa um sinal de que a paisagem estratégica da região está em transformação. Se concretizada, essa mudança pode redefinir alianças históricas e criar novas frentes de conflito ou cooperação.
Conclusão
A possível reaproximação entre Hezbollah e Arábia Saudita é um movimento de alto impacto, que vai muito além de uma manobra diplomática. Ela reflete o redesenho do tabuleiro geopolítico do Oriente Médio, em que antigas rivalidades podem ser relativizadas diante de ameaças comuns. Entre pragmatismo e rivalidades históricas, o resultado desse processo poderá moldar não apenas o futuro do Líbano e da Península Arábica, mas também a própria estabilidade regional.
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