Relatório da AIEA Revela Atividades Nucleares Secretas do Irã com Material Não Declarado

Laboratórios da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) em Seibersdorf, Áustria, 26 de maio de 2025
Vista dos laboratórios da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) em Seibersdorf, na Áustria, em 26 de maio de 2025. Foto: REUTERS/Leonhard Foeger

Um relatório confidencial da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), obtido pela Reuters, conclui que o Irã realizou atividades nucleares ocultas envolvendo material nuclear não declarado em três locais que estavam sob investigação há anos. Segundo o documento solicitado pelo Conselho de Governadores da AIEA em novembro de 2024, esses sítios — e possivelmente outros locais relacionados — integravam um programa nuclear estruturado não declarado até, ao menos, meados de 2018. A descoberta reacende preocupações sobre as intenções nucleares de Teerã e sua transparência junto aos órgãos internacionais de vigilância.

Contexto Histórico do Programa Nuclear Iraniano

Desde o final dos anos 1990, a comunidade internacional monitora atentamente o programa nuclear iraniano, inicialmente voltado a fins pacíficos, mas gradualmente cercado de suspeitas sobre potenciais aplicações militares. Após a assinatura do Plano de Ação Conjunto Global (PAEG) em 2015 — também conhecido como JCPOA ou Acordo de Viena — o Irã comprometeu-se a limitar seu enriquecimento de urânio a 3,67% em troca do alívio de sanções econômicas. Ainda assim, denúncias sobre instalações não declaradas e a descoberta de partículas de urânio em locais fora do escopo do PAEG mantiveram viva a desconfiança internacional. A recente expansão do estoque de urânio iraniano para níveis próximos aos de arma, mesmo com negociações em curso para renovação do acordo, intensifica esses receios.

Principais Descobertas do Relatório da AIEA

De acordo com o documento da AIEA, as investigações identificaram três locais principais onde ocorreram atividades nucleares secretas:

  1. Turquzabad (Teerã): Apelidado de “armazém atômico secreto” após divulgação em 2018, onde inspeções ambientais encontraram partículas de urânio natural e de urânio de baixo enriquecimento (≤5%). Esses indícios sugerem processamento ou manuseio de material nuclear sem supervisão internacional.
  2. Varamin: Localizado a sudeste de Teerã, onde foram detectadas partículas de urânio em amostras ambientais. Embora o Irã afirme que o local corresponde a uma fábrica de alimentos para animais, a AIEA apontou indícios de atividades que poderiam estar relacionadas à conversão ou pesquisa nuclear, sem explicações transparentes por parte de Teerã.
  3. Lavizan-Shian (Teerã): Complexo militar demolido em 2004, associado a possíveis atividades de conversão de urânio (fluoração de minério). O relatório destaca que equipamentos suspeitos foram transferidos para outros sítios, dificultando o rastreamento do material. Até hoje, Teerã não forneceu uma localização precisa do material remanescente.

O documento conclui que esses três locais — junto a outros possíveis sítios relacionados — integravam um programa nuclear estruturado não declarado até pelo menos 2018, e que “algumas atividades utilizaram material nuclear não declarado”. Ainda, ressalta que, desde 2018, o Irã não apresentou explicações tecnicamente satisfatórias sobre a origem e o percurso desse material ou dos equipamentos contaminados.

Detalhes dos Locais Sob Investigação

  • Turquzabad: Inspeções ambientais detectaram partículas de urânio com assinaturas isotópicas não compatíveis com usos civis convencionais. A AIEA suspeita de manufatura ou testes de componentes de centrífugas, enquanto o Irã atribui o vestígio a sabotagem ou espionagem, justificativa que a agência considera insuficiente.
  • Varamin: Apesar de menos noticiado, gerou preocupação semelhante, pois as amostras não podem ser explicadas apenas por processos agroindustriais. A AIEA solicitou novas visitas, mas Teerã tem restringido o acesso e não apresentou documentos que atestem atividades exclusivamente pacíficas.
  • Lavizan-Shian: Embora o complexo tenha sido demolido em 2004, vestígios de contaminação persistem. Amostragens desde 2020 confirmaram presença de material nuclear, possivelmente vinculado a testes de flúor-eração de minério. A movimentação de contêineres em 2004 e a recusa inicial em permitir inspeções aprofundadas reforçam a suspeita de pesquisas sigilosas.

Evolução Recente do Estoque Iraniano de Urânio

Além do achado de locais não declarados, outro ponto crítico é o aumento acelerado do estoque de urânio enriquecido ao 60% de U-235 — nível próximo ao de arma. Conforme relatório da AIEA de meados de maio de 2025, o Irã acumulou 408,6 kg de urânio enriquecido a 60%, um crescimento de quase 50% desde fevereiro deste ano. Esse volume equivale a matéria-prima suficiente para múltiplas armas, caso seja enriquecido a 90%. Até o início de 2024, o total de urânio enriquecido girava em torno de 275 kg ao mesmo grau, demonstrando aceleração significativa em poucos meses.

Em fevereiro de 2025, a IAEA já registrava 8294,4 kg no total de urânio enriquecido (todas as formas e níveis). Desses, 274,8 kg eram urânio hexafluoreto a 60% (406,5 kg em massa de hex), o que permitia, em teoria, a produção de aproximadamente sete armas nucleares em poucas semanas, caso direcionado integralmente ao enriquecimento a 90%.

Reações de Teerã e do Ocidente

O governo iraniano rejeita veementemente as conclusões, classificando-as como “baseadas em informações fabricadas” e alegando que todos os seus materiais e atividades nucleares foram devidamente declarados à AIEA. Teerã sustenta que as partículas podem ter origem em “contaminações externas” ou “atos maliciosos”, mas essa narrativa não convenceu a agência nem a comunidade internacional. A AIEA insiste que não houve “explicações tecnicamente críveis” que descartem a suspeita de longo prazo de atividades nucleares não declaradas.

Por outro lado, Estados Unidos, Reino Unido e França — signatários europeus do JCPOA — expressam forte preocupação e exigem que o Irã conceda acesso irrestrito aos locais investigados, coopere integralmente com a AIEA e apresente registros históricos do programa “Amad” (plano militar nuclear iraniano dos anos 2000). Caso isso não ocorra, advertiram que poderão reimpor sanções severas, prejudicando a economia de Teerã e minando as negociações diplomáticas em curso desde abril de 2025.

Implicações para o Acordo Nuclear e a Segurança Regional

As conclusões da AIEA colocam em xeque a credibilidade do Irã no cumprimento de suas obrigações sob o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e sob o próprio PAEG. O fato de existirem três locais não declarados e de o Irã ter acumulado rapidamente urânio a 60% sugere que, se houver retomada do acordo, será preciso criar mecanismos mais rígidos de verificação.

  1. Credibilidade do PAEG: O avanço do enriquecimento e as pendências históricas dificultam a disposição das potências ocidentais em mostrar flexibilidade sem garantias concretas de que todas as instalações ocultas foram esclarecidas.
  2. Sanções condicionais: A reimposição de sanções atua como mecanismo de pressão, mas precisa ser calibrada para não inviabilizar acordos futuros. Estados Unidos e União Europeia avaliam recair sobre setores específicos do programa nuclear clandestino, sem atingir indiscriminadamente a economia iraniana.
  3. Tensão no Oriente Médio: A aceleração do enriquecimento e a incerteza sobre o destino do material não declarado aumentam o receio de uma corrida armamentista nuclear regional. Israel, já em alerta, e as monarquias do Golfo cooperam com potências nucleares para contrabalançar avanços iranianos.

Elementos Técnicos e Estruturais do Programa Oculto

Especialistas em não proliferação ressaltam que um programa nuclear estruturado não declarado envolve:

  • Conversão de urânio: Transformação de urânio natural (U₃O₈) em hexafluoreto de urânio (UF₆). Em Lavizan-Shian, indícios de processos de fluorinação até 2003 sugerem experimentação em escala piloto para alimentar centrífugas.
  • Enriquecimento clandestino: Embora a AIEA não tenha relatado centrífugas operando em instalações subterrâneas, as partículas de urânio de baixo enriquecimento encontradas em Turquzabad indicam testes ou armazenamento de equipamentos sensíveis ao enriquecimento.
  • Dimensões militares: Relatórios anteriores já apontavam que, até 2009, o Irã executou “atividades relevantes ao desenvolvimento de dispositivo explosivo nuclear”. As conclusões renovadas até 2018 ampliam a jurisdição temporal desse programa clandestino.

O aumento significativo do estoque de urânio a 60%, alcançado em 2025, demonstra que o Irã não apenas manteve infraestruturas ocultas, mas ampliou sua capacidade de enriquecer diretamente a um grau próximo ao de arma, reduzindo drasticamente o “tempo de breakout” (intervalo necessário para produzir urânio a 90%).

Desafios de Verificação e Cooperação

A cooperação com a AIEA está ancorada no Acordo de Salvaguardas Abrangentes (CSA) e nas resoluções do Conselho de Governadores. Desde 2018, a agência emitiu múltiplas resoluções exigindo acesso a sítios não declarados e fornecimento de documentação detalhada. Entretanto, o Irã alega ter entregado todos os documentos e contesta a metodologia da AIEA, que se baseia em análises ambientais e imagens de satélite para inferir atividades clandestinas.

  • Perda de conhecimento de base: Ao remover equipamentos de vigilância instalados sob o JCPOA e ao não implementar o Protocolo Adicional desde fevereiro de 2021, o Irã impediu que a AIEA realizasse acessos complementares a qualquer instalação, comprometendo seriamente o monitoramento.
  • Falta de explicações tecnicamente críveis: A AIEA afirma que não recebeu justificativas consistentes para as discrepâncias no balanço de material em experiências de produção de metal de urânio no laboratório Jaber Ibn Hayyan.
  • Possibilidade de estoques clandestinos de centrífugas: Mesmo que se conheça o número de centrífugas instaladas em Natanz e Fordow, desconhece-se quantas foram fabricadas ou deslocadas para locais não declarados. Isso aumenta a incerteza sobre a capacidade futura de enriquecimento rápido.

Recomendações e Perspectivas Futuras

Analistas de não proliferação sugerem que a solução duradoura depende de:

  1. Acesso irrestrito da AIEA: Permitir visitas sem notificações prévias — incluindo inspeções “cinco sentidos” — é essencial para confirmar a ausência de material oculto e rastrear o destino do urânio não declarado.
  2. Diálogo diplomático multilateral: A Comissão Conjunta do JCPOA (que inclui EUA, UE, China, Rússia e Irã) deve abordar as “pendências históricas” do programa Amad antes de estabelecer novos mecanismos de confiança.
  3. Sanções calibradas: A reimposição de sanções ao setor nuclear clandestino pode ter efeito dissuasório, desde que não seja tão ampla a ponto de inviabilizar negociações futuras.
  4. Transparência iraniana: Divulgação de arquivos confidenciais, depoimentos de responsáveis antigos e detalhes sobre o destino do material contaminado são fundamentais para restaurar a confiança.

Caso essas medidas não avancem, há risco de um efeito dominó na proliferação nuclear do Oriente Médio. Israel, já em estado de alerta, e as monarquias do Golfo podem intensificar cooperações com potências nucleares para contrabalançar eventuais avanços iranianos. Além disso, a instabilidade política interna no Irã, marcada pela tensão entre facções moderadas e linha-dura, influenciará diretamente a disposição de Teerã em cooperar ou, ao contrário, adotar uma postura mais confrontacional.

Conclusão

O relatório da AIEA sobre as atividades nucleares secretas do Irã com material não declarado reforça a urgência de um processo robusto de verificação e monitoramento. A existência de três locais — Turquzabad, Varamin e Lavizan-Shian — integrando um programa clandestino até 2018, combinada com o rápido acúmulo de urânio a 60% em 2025, coloca em xeque a possibilidade de uma retomada tranquila do Acordo de Viena. O futuro do JCPOA e a estabilidade regional dependerão de como o Irã e a comunidade internacional lidarão com essas pendências: sem transparência e cooperação efetiva, paira o risco de agravar a crise nuclear, com consequências geopolíticas e econômicas de longo alcance.

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