A eleição judicial no México: democratização, controvérsias e o futuro do Judiciário

Presidente do México Claudia Sheinbaum em coletiva de imprensa sobre a primeira eleição judicial do país, no Palácio Nacional, Cidade do México, 2 de junho de 2025.
Claudia Sheinbaum, presidente do México, participa de coletiva de imprensa no Palácio Nacional para comentar a primeira eleição judicial do país, realizada em 1º de junho de 2025. Foto: REUTERS/Henry Romero.

No domingo, 1º de junho de 2025, o México realizou a primeira eleição direta de juízes em sua história, conforme já descrito em México Realiza Primeira Eleição Judicial em Meio a Preocupações sobre o Estado de Direito, mobilizando mais de 7.700 candidatos para cerca de 2.681 cargos em todas as instâncias judiciais, incluindo as nove vagas da Suprema Corte de Justiça da Nação. A reforma, adotada em 2024, tinha como objetivos declarados democratizar o Judiciário, aumentar a transparência e combater a corrupção sistêmica que, desde a década de 1990, se manifestava em atrasos de processos e subornos. Contudo, embora o governo defenda que o pleito fortalecerá o Estado de Direito, críticos apontam riscos de enfraquecimento dos freios e contrapesos, politização e até influência de grupos criminosos.

Resultados Oficiais e Perfil dos Eleitos

A apuração, concluída em meados de junho, confirmou que o partido Morena obteve êxito em eleger os nove ministros da Suprema Corte por meio de votos populares, garantindo assim controle quase total do tribunal. Hugo Aguilar Ortiz, advogado indígena mixteco de Oaxaca, liderou a votação com cerca de 5,5 milhões de votos (5,2% do total), e será empossado como presidente da Suprema Corte para o biênio 2025–2027; sua eleição simboliza um avanço histórico para a representação indígena, embora críticos ressaltem seu histórico de alinhamento com o oficialismo e participação em projetos controversos como o Tren Maya.

Além de Aguilar, foram eleitas, entre outras, as ministras Lenia Batres Guadarrama, Yasmín Esquivel Mossa e Loretta Ortiz Ahlf, todas em funções que se estenderão até o final de seus mandatos originais, conforme previsto na reforma. Dos nove cargos, cinco foram ocupados por mulheres e quatro por homens, todos com afinidade ao governo, exceto Giovanni Figueroa, acadêmico da Ibero, cuja vinculação partidária é menos evidente. O fato de Morena ter emplacado todos os seus candidatos gerou preocupações sobre a independência judicial e a capacidade da Corte de frear eventuais abusos do Executivo.

Participação Eleitoral e Desafios Técnicos

A participação foi baixa: aproximadamente 13% do eleitorado compareceu às urnas, muito aquém das projeções iniciais que esperavam até 30% de comparecimento. Em algumas regiões urbanas, como Coyoacán, a adesão chegou a 28%, enquanto em Zapopan não ultrapassou 20%. O boletim, extenso e contendo até seis cédulas, levou em média 9 minutos e 17 segundos por eleitor, ocasionando filas de até duas horas em seções eleitorais da Cidade do México. Em zonas rurais de Chiapas, falhas em urnas eletrônicas móveis obrigaram o uso de sistemas manuais, o que gerou atrasos e insatisfação entre os eleitores.

Milhões de mexicanos no exterior e detentos sem sentença ficaram impedidos de votar, medida criticada por ONGs de direitos humanos como excludente. Além disso, a decisão do Instituto Nacional Eleitoral (INE) de restringir a contagem de votos às juntas distritais — sem participação cidadã direta — suscitou questionamentos sobre transparência.

Histórico e Justificativa da Reforma

Desde a década de 1990, relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos apontavam que cerca de 60% dos processos criminais aguardavam decisão por mais de dois anos, alimentando denúncias de corrupção e falta de independência. Organizações como o México Unido Contra la Delincuencia (MUCD) defendiam que o Judiciário, fechado a indicações internas, estava desconectado dos anseios populares. Com base nesse cenário, a emenda constitucional de 2024 redefiniu o sistema de seleção de juízes:

  • Redução no número de ministros da Suprema Corte: de 11 para 9, com mandatos de 12 anos e sem possibilidade de recondução.
  • Critérios de elegibilidade flexibilizados: exigência de 10 anos de experiência jurídica (ante 15 anos) e permissão para candidaturas autônomas ou apoiadas por entidades civis reconhecidas.
  • Participação ampliada de Organizações da Sociedade Civil (OSC): para fiscalizar inscrições e verificar antecedentes dos postulantes.
  • Eleições regionais simultâneas em 19 das 32 entidades federativas, escolhendo juízes de tribunais colegiados e de distrito.

Apesar das finalidades democráticas, entidades como a Red por la Independencia de la Judicatura (RIJ) criticaram a implementação apressada, com debates públicos escassos, mudanças de regras em andamento e falta de preparo técnico para urnas eletrônicas. Além disso, oito ministros renunciaram em outubro de 2024 para participar da eleição, enquanto três — Lenia Batres, Yasmín Esquivel e Loretta Ortiz — permanecem no tribunal e concorreram para manter seus cargos.

Controvérsias em Torno dos Candidatos

Nas semanas que antecederam a votação, várias candidaturas polêmicas vieram à tona:

  • José Fernando Montes, ex-advogado de Joaquín “El Chapo” Guzmán, figura controversa por seu histórico de defesa de narcotraficantes, foi inscrito para concorrer a uma vaga na Suprema Corte. A Human Rights Watch alertou para conflito de interesses e fragilidade ética.
  • Carlos “El Lince” Salazar, condenado por contrabando de drogas em 2018, tentou concorrer a juiz de primeira instância em Sonora; sua inscrição foi reprovada, mas o episódio expôs falhas na triagem de antecedentes.
  • Denúncias de cartéis apoiando candidatos em Guanajuato e Sinaloa, com o objetivo de influenciar processos judiciais locais, levantaram suspeitas de captura criminosa do Judiciário.

Os partidários do PAN e do PRI acusam Morena de usar recursos públicos para mobilizar eleitores em favor de candidatos alinhados ao governo, inclusive distribuindo “colinhas” eleitorais para guiar o voto diante da complexidade de escolher entre 234 nomes. Documentos internos do PAN, divulgados em maio, sugerem coordenação de servidores estaduais para orientar eleitores locais. Caso a Suprema Corte tenha maioria de juízes leais a Sheinbaum, teme-se que ações diretas de inconstitucionalidade e suspensões de decretos percam efetividade, comprometendo a separação dos poderes.

Reações Políticas e Sociedade Civil

Defesa do Governo

A presidente Claudia Sheinbaum promoveu a eleição como “um passo para transformar o sistema de justiça em um Judiciário mais próximo do povo”. Em pronunciamentos oficiais, ressaltou que a medida fortalece a democracia e combate a corrupção, destinando verbas de campanha para treinar mesários, distribuir materiais informativos em áreas rurais e parcerias com rádios comunitárias.

Oposição e Boicote

PAN e PRI convocaram boicote nacional, rotulando o pleito como “fraude eleitoral”. Alegaram falta de equidade (candidatos governistas com acesso privilegiado a mídias estatais), complexidade intransponível (impossibilidade de avaliar 234 nomes) e risco de “votação cega”. Líderes oposicionistas, como o ex-presidente Vicente Fox, chamaram a eleição de “Domingo Negro” e ameaçaram contestar judicialmente os resultados.

Entidades da Sociedade Civil

OSC como a RIJ e o Centro de Análisis de Políticas Públicas y Derechos Humanos (CAPPDH) adotaram posição cautelosa, considerando falhas estruturais: ausência de debates públicos obrigatórios, fiscalização insuficiente de antecedentes e sobrecarga de candidatos por vaga, fatores que colocam em risco a legitimidade do processo. A Fundación para la Justicia publicou manifesto acusando “flagrante inconstitucionalidade” na descontinuidade de normas durante a disputa eleitoral.

Comparação Internacional

  • Bolívia: Desde 2017, juízes nacionais são eleitos por voto direto. Contudo, a partidarização foi intensa, com magistrados favoráveis ao governo emitindo decisões alinhadas ao Executivo e líderes comunitários pressionando populações indígenas.
  • Estados Unidos: Ao nível estadual, alguns estados (Indiana, Alabama) realizam eleições partidárias para juízes, gerando debates sobre politização; em outros (Califórnia), aplica-se sistema de mérito e retenção, onde juízes eleitos pela meritocracia passam periodicamente por votos de aprovação, balanceando qualificação técnica e controle popular. No âmbito federal, juízes são indicados pelo presidente e confirmados pelo Senado, preservando freios e contrapesos internos.

Esses exemplos internacionais mostram que, embora a eleição judicial seja usada em diferentes graus, o modelo mexicano — o primeiro no mundo a submeter todos os juízes federais ao voto popular — é singular e envolve riscos de independência que não foram plenamente explicitados antes de sua implementação.

Perspectivas Futuras e Ajustes Necessários

Validação de Resultados e Impugnações

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão criado pela reforma, terá até duas semanas para validar os resultados (prazo até 15 de junho de 2025). Recursos poderão questionar candidaturas mal validadas ou pleitear anulação de votos em distritos onde houve irregularidades técnicas ou evidência de pressão de grupos internos.

Eleições de 2027

Está prevista nova rodada em 2027 para mais de 1.000 cargos regionais e de segunda instância. Com base nas lições de 2025, projetos de aprimoramento incluem:

  • Debates Públicos Obrigatórios para que eleitores avaliem candidaturas de forma mais informada.
  • Auditorias Independentes de Antecedentes para reforçar a triagem de vínculos políticos ou criminosos.
  • Revisão de Critérios de Elegibilidade, possivelmente reajustando exigências de idade e experiência para cargos superiores caso se confirme excesso de juízes vinculados a interesses específicos.

Implicações para o Estado de Direito

A consolidação desse modelo eleitoral provocará impactos diretos na confiança de investidores internacionais e na percepção democrática do México. Agências de classificação de risco, como o Índice de Economia Política Internacional (EPIC), mantêm o país em “risco moderado”, mas alertam que um Judiciário dominado pelo Executivo compromete a previsibilidade jurídica, elemento essencial para projetos de infraestrutura e atração de capitais estrangeiros.

Enquanto ONGs de direitos humanos acompanham casos emblemáticos que cheguem à Suprema Corte para avaliar se juízes eleitos realmente farão valer a Constituição ou se atuarão como filtros políticos, setores empresariais observam com cautela possíveis mudanças no ambiente regulatório e judicial.

Conclusão

A eleição de 1º de junho de 2025 representou um marco histórico e arriscado no sistema judiciário mexicano. Embora o governo defenda que a reforma democratiza o Judiciário e combate a corrupção tradicional, a baixa participação, as falhas técnicas, as candidaturas polêmicas e o controle quase absoluto por parte de Morena indicam fragilidades que podem comprometer a independência e a legitimidade do tribunal. O resultado oficial consolidou uma Suprema Corte alinhada ao Executivo, levantando dúvidas sobre o equilíbrio entre poderes.

À medida que o novo modelo se consolida, o México enfrentará o desafio de corrigir falhas estruturais, fortalecer mecanismos de fiscalização e garantir que o Poder Judiciário seja de fato guardião imparcial da Constituição — e não instrumento de consolidação de poder político. A experiência mexicana, observada de perto pela América Latina e pelo mundo, poderá servir de aprendizado, positivo ou negativo, para outros países que ponderam reformas similares.













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