Reino Unido Endossa Plano de Autonomia do Marrocos para o Saara Ocidental: Implicações e Desdobramentos

David Lammy, secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, caminhando no serviço anual do Commonwealth Day na Abadia de Westminster, Londres, 10 de março de 2025.
David Lammy participa do serviço anual do Commonwealth Day na Abadia de Westminster, Londres, em 10 de março de 2025. Foto: REUTERS/Isabel Infantes.

O anúncio oficializado pelo Ministro das Relações Exteriores britânico, David Lammy, em Rabat, marca um ponto de inflexão no impasse de décadas sobre o Saara Ocidental. Ao declarar que o Reino Unido considera a proposta de autonomia apresentada por Marrocos em 2007 “a base mais credível, viável e pragmática para uma resolução duradoura do conflito”, Londres alinha-se aos Estados Unidos, França e, mais recentemente, Espanha, unindo quatro membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU em torno dessa solução.

Histórico e Contexto Atual

Origens do Conflito

O Saara Ocidental — um território de cerca de 266 mil km² na costa noroeste africana — foi antigo protetorado espanhol até 1975. Após a retirada da Espanha, Marrocos e Mauritânia avançaram para ocupar a região, enquanto a Frente Polisário, apoiada pela Argélia, proclamou a República Árabe Saarauí Democrática (RASD) e iniciou hostilidades. Em 1979, a Mauritânia se retirou, deixando Marrocos como o principal antagonista direto da Frente Polisário.

O cessar-fogo de 1991, mediado pela ONU, incluiu a promessa de realizar um referendo para a autodeterminação dos saarauís — promessa que nunca se concretizou devido a impasses sobre a elegibilidade dos eleitores. Desde então, o território permanece dividido: Marrocos controla cerca de dois terços (área denominada “zona ocupada” pelos partidários da RASD), enquanto a Frente Polisário mantém influência na faixa oriental, apoiada por campos de refugiados no sudoeste argelino.

Evolução da Posição Internacional

Até meados de 2024, o Reino Unido reiterava sua adesão ao processo liderado pela ONU, defendendo o direito à autodeterminação dos saarauís e afirmando que Marrocos não era o “poder administrador” reconhecido pela ONU. Contudo, o contexto mudou significativamente em 1º de junho de 2025, quando David Lammy declarou apoio formal ao Plano de Autonomia de 2007 de Marrocos como “a única proposta com o potencial de pôr fim ao conflito”.

O Plano de Autonomia de 2007: Estrutura e Objetivos

Lançada em 11 de abril de 2007 pelo Rei Mohammed VI, a Proposta de Autonomia para o Saara Ocidental contém os seguintes pontos-chave:

  1. Autogoverno Local Ampliado:
    • Instituição de um Conselho Legislativo eleito localmente, com competências em educação, saúde, obras públicas e administração interna.
    • Criação de conselhos municipais e regionais para gerir assuntos cotidianos, respeitando tradições saarauís.
  2. Sistema Judiciário e Segurança:
    • Funcionamento de tribunais regionais com juízes locais e formação de forças policiais saarauís, integrados ao quadro nacional marroquino.
    • Cooperação com a MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental) para fiscalização de direitos humanos.
  3. Garantias Constitucionais e Culturais:
    • Inclusão de estatuto constitucional que assegura o uso do árabe hassání e a proteção da cultura saarauí.
    • Reconhecimento formal dos costumes e da herança histórica da população local sob a soberania marroquina.
  4. Cooperação Internacional:
    • Parcerias com a ONU e organizações regionais para supervisionar a transição, monitorar direitos humanos e preparar eleições locais.
    • Participação de ONGs internacionais para auditar processos eleitorais e garantir transparência.
  5. Desconsideração do Referendo de Independência:
    • Implícito reconhecimento de que o referendo plebiscitário — defendido pela Frente Polisário e pela Argélia — não avançaria, concentrando esforços na autonomia sem pretender desmembrar o território.

A proposta, desde seu anúncio, enfrentou ceticismo da Frente Polisário, que exige necessariamente um referendo de autodeterminação com cláusula de independência. A liderança saarauí alega que a maioria da população optaria pela independência, o que tornaria a autonomia insuficiente para seus objetivos políticos.

A Mudança de Posição Britânica e Suas Justificativas

Razões Diplomáticas e de Segurança

  1. Alinhamento com Parceiros Ocidentais:
    • Estados Unidos reconheceram a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental em dezembro de 2020. A França, por sua vez, vinha considerando a autonomia como “a única forma de avançar” há anos. Ao formalizar o apoio, o Reino Unido consolida o “Grupo de Amigos do Saara Ocidental” (EUA, França, Espanha e agora Reino Unido).
  2. Segurança Regional e Antiterrorismo:
    • A instabilidade no Saara Ocidental favorece a atuação de grupos jihadistas no Sahel — especialmente o Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI) e o Estado Islâmico no Grande Saara (ISGS). Apoiar a autonomia fortalece a cooperação de Marrocos com agências britânicas e europeias de inteligência, buscando conter a circulação de armas e combatentes no Corredor Mauritânia-Mali-Alger-Marrocos.
  3. Relações Comerciais e Investimentos:
    • O UK Export Finance projeta até 6 bilhões de euros em investimentos britânicos em Marrocos até 2030, contemplando setores de infraestrutura energética (renováveis), saúde e logística portuária.
    • Londres vê no co-patrocínio da Copa do Mundo de 2030 (Marrocos, Espanha e Portugal) uma oportunidade para empresas britânicas atuarem em projetos de modernização de aeroportos, estradas e estádios, garantindo contratos lucrativos.

Impactos no Soft Power Marroquino

O aval britânico amplia o prestígio internacional de Marrocos, que busca se consolidar como mediador de conflitos no Norte da África e porta-voz das monarquias árabes mais alinhadas ao Ocidente. Em Rabat, o Ministro Nasser Bourita qualificou o apoio como “parte de um impulso histórico para acelerar a resolução do conflito”.

Reações e Contrapontos

Reação de Rabat

  • Nasser Bourita: Enalteceu a declaração britânica como “histórica” e afirmou que Londres e Rabat assinaram acordos em saúde, inovação, portos, infraestrutura hídrica e compras públicas. Bourita destacou que “as empresas britânicas poderão ‘scorear alto’ graças à preparação para a Copa de 2030”.
  • Autoridades Locais no Saara Ocidental: Durante visita de diplomatas britânicos a Laayoune, imprensa marroquina relatou que representantes do Comitê Nacional de Direitos Humanos (CNDH) destacaram avanços em suas ações, mas também articularam queixas sobre a necessidade de maior resposta às denúncias apresentadas pelo público local.

Frente Polisário e Argélia

  • Frente Polisário: Reiterou que qualquer proposta que não contemple o direito efetivo à independência é inaceitável. Alegam que a maioria dos saarauís rejeitaria a autonomia pura e que o único caminho legítimo é o referendo garantido pela ONU.
  • Argélia: Classificou a posição britânica como um “desvio” aos princípios do processo de paz da ONU, acusando Marrocos de infligir violações contra os direitos humanos dos saarauís e questionando a legitimidade de eleições locais sob administração marroquina.

Reação de Outras Nações

  • Estados Unidos e França: Mantêm seu apoio ao Plano de Autonomia, reforçando a ideia de que o referendo de independência não avançará pelas condições colocadas sobre a elegibilidade dos eleitores.
  • Espanha: Formalizou apoio em meados de maio de 2025, sinalizando que a posição ibérica se alinha à de França, Reino Unido e EUA, o que pode servir de impulso diplomático adicional a Marrocos.
  • Ecuador: Em outubro de 2024, retirou reconhecimento à RASD, aproximando-se ainda mais da posição marroquina.
  • União Africana (UA): Continua dividida; países que reconhecem a RASD (por exemplo, África do Sul, Namíbia) mantêm reservas, enquanto outras nações do Norte da África e Sahel (eg.: Tunísia, Mauritânia) tendem a não se opor abertamente à autonomia.

Implicações Geopolíticas e Econômicas

Redução das Tensões Transfronteiriças

  • Estabilidade no Magrebe e Sahel:
    • A aceitação do Plano de Autonomia pela maioria das potências ocidentais pode levar a uma redução das fronteiras militares e diminuir a penetração de redes terroristas entre Mauritânia, Mali, Argélia e Marrocos.
    • Uma governança local coordenada com Rabat facilitaria patrulhamento conjunto e compartilhamento de informações de segurança, diminuindo a área de manobra do AQMI e de militantes afiliados ao Estado Islâmico no Grande Saara (ISGS).

Investimentos e Desenvolvimento

  • Projetos para a Copa do Mundo 2030:
    • A coorganização de Marrocos, Espanha e Portugal exige que o reino invista na modernização de hospitais, universidades, aeroportos e rodovias. A entrada de fundos britânicos — estimados em até 6 bilhões de euros — pode acelerar a conclusão de obras em cidades-sede como Laayoune e Dajla, no Saara Ocidental.
  • Energias Renováveis:
    • O deserto do Saara Ocidental apresenta elevado potencial para projetos solares e eólicos, atraindo investidores europeus e do Golfo. Com autonomia, Marrocos planeja implementar usinas solares de grande escala, conectadas ao sistema nacional de energia e a projetos de exportação de hidrogênio verde para a Europa.
  • Setor Portuário e Logística:
    • Portos de Laayoune e Dajla estão no radar de grupos internacionais para se tornarem polos de transbordo entre África Subsaariana e Europa. A parceria britânica prevê modernização de terminais e construção de hidrovias interiores para escoamento de minerais estratégicos (fosfato, lítio).

Direitos Humanos e Desafios Sociais

  • Monitoramento Internacional Necessário:
    • Apesar do plano de autonomia prometer instituições locais, organizações como Human Rights Watch e Anistia Internacional alertam sobre possíveis restrições à liberdade de expressão e perseguição de ativistas pró-independência.
    • O Comitê Nacional de Direitos Humanos (CNDH) relatou avanços em capacitação de policiais, mas também demandas não atendidas quanto a respostas efetivas a denúncias de abusos.
  • Desigualdade e Sentimento de Exclusão:
    • Caso o governo central marroquino não assegure participação real dos saarauís nas decisões econômicas, projetos de infraestrutura podem perpetuar um modelo extrativo, beneficiando sobretudo grandes corporações em detrimento de pequenas comunidades locais.

Perspectivas para o Processo de Paz

  1. Negociações Inclusivas e Credíveis
    • A Frente Polisário e a Argélia veem a autonomia como um ponto de partida insuficiente. Para virar realidade, será necessário convidar representantes de todas as facções saarauís (civis, militares, acadêmicos) a participar de mesas de diálogo, possivelmente mediadas pela ONU.
  2. Supervisão Rigorosa da ONU
    • A criação de um Comitê de Observadores ligado à MINURSO, com mandatado para fiscalizar eleições locais e monitorar direitos humanos, seria vital para conferir transparência e legitimidade.
  3. Programas de Desenvolvimento Socioeconômico
    • Planos de investimento devem incluir capacitação técnica de jovens saarauís, incentivo ao empreendedorismo local e políticas de inclusão social para mitigar o êxodo rural e o desemprego entre a população juvenil.
  4. Pressão Diplomática Contínua
    • A atuação conjunta de EUA, Reino Unido, França e Espanha — mantendo o “grupo de amigos” coeso — pressionaria Marrocos e Argélia a avançarem em negociações, evitando que o impasse se arraste. Caso contrário, corre-se o risco de novas tensões militares na região.

Mesmo com o apoio corrente, o referendo de autodeterminação continua sendo demanda central da Frente Polisário; sem garantias de que a “opção independência” seja contemplada em futuras consultas, a legitimidade local do Plano de Autonomia estará sempre em xeque. Assim, por mais que Rabat busque demonstrar ganhos econômicos e estabilidade, é imprescindível que a comunidade internacional monitore de perto o respeito aos direitos fundamentais dos saarauís.

Conclusão

A posição britânica de 1º de junho de 2025 repre-senta um avanço diplomático notável em favor do Plano de Autonomia Marroquino para o Saara Ocidental. Ao alinhar-se formalmente a um grupo crescente de potências ocidentais, o Reino Unido sinaliza que, na prática, a solução via autonomia — em vez de um referendo de independência — é considerada a alternativa mais realista para encerrar um dos conflitos coloniais mais longos do mundo.

Contudo, a efetividade dessa decisão depende de quatro condicionantes fundamentais:

  1. Participação Efetiva dos Saharauís: Para que o plano transcenda a aparência de uma “autonomia de fachada”, é vital que as instituições locais eleitas tenham poder real sobre o orçamento, políticas sociais e decisões judiciais.
  2. Mecanismos de Fiscalização Internacional: Sem fiscalização rigorosa da ONU e de organizações independentes de direitos humanos, há risco de consolidação de violações e de descrédito do processo.
  3. Distribuição Equitativa dos Benefícios Econômicos: Os bilhões em investimentos previstos (em infraestrutura e energia) devem reverter em melhoria palpável da qualidade de vida dos habitantes saarauís, não apenas em lucros para grandes corporações.
  4. Diálogo Permanente Entre Marrocos e Argel: A normalização das relações bilaterais, até então estremecidas, é pré-requisito para garantir que o Saara Ocidental deixe de ser campo de disputa regional.

Em última análise, o Reino Unido passa a figurar como ator-chave para a consolidação de uma paz sustentável no Saara Ocidental. Se houvesse aceitação conjunta do Plano de Autonomia — respaldada por monitoramento internacional, diálogo inclusivo e investimentos focalizados —, poderia-se vislumbrar uma transição estável, evitando que o conflito ressurja num contexto ainda mais fragmentado.

Porém, sem atender plenamente às demandas de autodeterminação e ao resguardo de direitos fundamentais, qualquer progresso corre o risco de ser superficial. Assim, embora o horizonte pareça mais promissor com o aval britânico, o verdadeiro teste será a implementação prática do plano — e, sobretudo, a capacidade de Marrocos e Frente Polisário de negociar em bases de confiança mútua, sob os olhos atentos da ONU e da comunidade internacional.

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