
Nos últimos anos, a região do Sahel, na África Ocidental, tem vivido uma transformação geopolítica profunda marcada pelo fim da presença militar francesa e o fortalecimento de governos de orientação antiocidental. Desde 2013, a França mantinha uma presença militar significativa na região, com o objetivo de combater grupos jihadistas e garantir a estabilidade regional. Contudo, a percepção negativa local, o aumento da insegurança e o crescimento de discursos nacionalistas impulsionaram uma guinada que resultou na expulsão das tropas francesas e no fortalecimento de regimes militares que buscam novos parceiros internacionais, sobretudo a Rússia. Este artigo analisa os processos que levaram à retirada francesa, o perfil dessas lideranças emergentes, suas alianças e os desafios para o futuro político, econômico e de segurança do Sahel.
Contexto Histórico e Origem da Presença Militar Francesa
Desde 2013, a França lançou a operação Serval para conter o avanço de grupos jihadistas no Mali, que havia sido palco de um golpe de Estado e da ocupação do norte do país por insurgentes islâmicos ligados à Al Qaeda e ao Estado Islâmico. A operação evoluiu para a Barkhane, um esforço militar mais amplo na região do Sahel, que envolveu Burkina Faso, Níger, Chade e Mauritânia. Apesar do empenho e do apoio logístico francês, a violência jihadista expandiu-se, e as forças locais enfrentaram dificuldades para conter o avanço dos grupos armados, agravando a insegurança regional.
Em 2023, a Organização das Nações Unidas (ONU) reportou que o número de mortos em ataques violentos no Sahel aumentou para cerca de 3.450 em 2022, um crescimento de 15% em relação ao ano anterior, como mostra a tabela abaixo:
Ano | Número de Mortos | Variação Anual (%) |
---|---|---|
2021 | 3.000 | — |
2022 | 3.450 | +15% |
Fonte: ONU (2023)
O Fim da Presença Militar Francesa no Sahel
Em 2022 e 2023, governos militares de Mali, Burkina Faso e Níger romperam com a França, solicitando a retirada das tropas francesas, alegando que a presença francesa não cumpria as expectativas de segurança e era vista como um símbolo de neocolonialismo. Burkina Faso, sob o comando do capitão Ibrahim Traoré, foi o mais contundente, suspendendo acordos militares e expulsando militares e diplomatas franceses.
A França encerrou oficialmente a operação Barkhane em novembro de 2022, redirecionando seu foco para outras parcerias na região. Segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), em 2022 a França tinha cerca de 5.100 soldados no Sahel; em 2024, esse número caiu para menos de 500, concentrados principalmente na Costa do Marfim e no Níger:
Ano | Número de Soldados Franceses |
---|---|
2022 | 5.100 |
2023 | 1.500 |
2024 | < 500 |
Fonte: IISS (2024)
Ascensão de Lideranças e Narrativas Antiocidentais
Os governos militares que tomaram o poder defendem discursos nacionalistas, buscando reforçar a soberania e a autonomia regional. Ibrahim Traoré, por exemplo, resgata o legado de Thomas Sankara, defendendo políticas de controle estatal dos recursos naturais e rejeitando interferências estrangeiras.
Paralelamente, governos em Mali e Níger adotam posições semelhantes, utilizando retórica antiocidental para consolidar apoio popular, especialmente entre jovens e comunidades marginalizadas. No entanto, esses regimes enfrentam críticas internas e externas por violações de direitos humanos, limitações à liberdade política e postergação de eleições.
De acordo com o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit, Burkina Faso e Mali estão classificados como “regimes autoritários”, com pontuações abaixo de 3,5 em uma escala de 10, refletindo a deterioração dos direitos civis e políticos desde 2022, conforme demonstrado na tabela:
País | 2022 | 2024 | Classificação |
---|---|---|---|
Burkina Faso | 4,2 | 3,2 | Regime autoritário |
Mali | 4,5 | 3,4 | Regime autoritário |
Níger | 5,8 | 5,0 | Regime híbrido |
Fonte: EIU Democracy Index (2024)
Parcerias Alternativas: Rússia, Wagner e Multipolaridade
Com a saída francesa, a Rússia ampliou sua influência na região, principalmente por meio da atuação do grupo mercenário Wagner, que oferece treinamento militar, proteção a altos comandos e segurança em minas de ouro e urânio.
Burkina Faso e Mali têm sinais claros de cooperação com Wagner, enquanto Níger tem manifestado interesse similar. A presença russa já representa cerca de 25% da assistência militar recebida por esses países, segundo dados de inteligência ocidental de 2024, como detalhado na tabela abaixo:
País | Percentual de Assistência Militar russa (%) |
---|---|
Burkina Faso | 30 |
Mali | 25 |
Níger | 20 |
Fonte: Dados de inteligência ocidental (2024)
Além disso, o controle sobre recursos naturais tem se intensificado. A mineração de ouro sob controle de empresas ligadas a Wagner cresceu 40% em Burkina Faso entre 2022 e 2024.
Emergence da Alliance des États du Sahel (AES)
A aliança formada por Burkina Faso, Mali e Níger, chamada Alliance des États du Sahel (AES), objetiva criar uma união política, econômica e militar alternativa à CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental).
A AES busca estabelecer uma moeda comum, banco regional e políticas de segurança coordenadas. Contudo, essa iniciativa enfrenta desafios sérios, como sanções econômicas da CEDEAO, isolamento político e dificuldades financeiras, o que pode afetar sua viabilidade a médio prazo.
Dados da CEDEAO indicam que o PIB combinado desses países caiu 2,3% em 2024, devido a sanções comerciais e bloqueios financeiros, conforme mostra a tabela:
Ano | PIB Combinado (USD Bilhões) | Variação (%) |
---|---|---|
2023 | 58 | — |
2024 | 56,6 | -2,3% |
Fonte: CEDEAO Economic Report (2025)
Desafios, Riscos e Perspectivas
- Segurança: A saída francesa deixou um vácuo na capacidade logística e operacional contra grupos jihadistas, que continuam a realizar ataques violentos. A ONU reportou mais de 1.200 ataques violentos no Sahel somente no primeiro semestre de 2025, com aumento na presença de grupos afiliados ao Estado Islâmico.
- Governança e Democracia: A postergação indefinida de eleições por governos militares gera preocupações sobre o retrocesso democrático e a consolidação de regimes autoritários na região.
- Dependência Externa: A substituição da influência francesa por atores como a Rússia pode não garantir melhorias em direitos humanos ou desenvolvimento sustentável, criando uma nova dependência geopolítica.
- Pressão Internacional: Sanções e medidas da CEDEAO, União Europeia e Estados Unidos tentam forçar o retorno à ordem constitucional, mas têm impacto limitado diante do fortalecimento dos regimes militares e da busca por parceiros alternativos.
Conclusão
A retirada francesa do Sahel e a ascensão de lideranças antiocidentais sinalizam uma mudança radical no equilíbrio geopolítico da África Ocidental. Enquanto esses governos buscam afirmar soberania e diversificar parcerias, o cenário atual traz desafios complexos: insegurança crescente, fragilização democrática e a substituição de uma dependência por outra.
O futuro do Sahel dependerá da capacidade de seus países de superar essas dificuldades, equilibrando autonomia e cooperação internacional para garantir estabilidade, desenvolvimento e respeito aos direitos humanos.
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