Síria endurece combate ao captagon e busca romper legado do “narco-estado”

Ahmed al-Sharaa em reunião com Tom Barrack, maio de 2025, com a bandeira da Síria ao fundo.
Presidente interino da Síria, Ahmed al-Sharaa, recebe Tom Barrack em maio de 2025, em encontro oficial que abordou temas políticos e econômicos.

A ascensão de Ahmed al-Sharaa à presidência da Síria marcou uma guinada estratégica em um dos temas mais sensíveis e controversos da última década: o combate ao tráfico de captagon, a anfetamina que transformou o país em um centro global de narcotráfico e financiou o regime de Bashar al-Assad. Desde dezembro de 2024, o novo governo anunciou uma ofensiva de grandes proporções para desmantelar esse sistema.

Segundo dados oficiais, mais de 200 milhões de comprimidos foram apreendidos em operações conjuntas entre forças de segurança e unidades especializadas, com uma redução estimada de até 80% na produção dentro de áreas sob controle governamental. O esforço foi descrito por analistas como uma tentativa não apenas de estabilizar o país economicamente, mas também de sinalizar à comunidade internacional que Damasco busca romper com a imagem de “narco-estado” herdada do regime anterior.

O legado do captagon e a geopolítica do tráfico

Durante o governo de Bashar al-Assad, a produção e o contrabando de captagon tornaram-se pilares financeiros para sustentar a máquina militar e política do regime, especialmente diante das sanções internacionais. O comprimido — barato, viciante e fácil de transportar — abastecia redes de consumo no Golfo, no Oriente Médio e até na Europa, gerando bilhões em receitas ilícitas.

O tráfico ganhou tal dimensão que países como Arábia Saudita e Jordânia chegaram a acusar Damasco de usar a droga como arma política e instrumento de pressão diplomática. O desafio do novo governo, portanto, é duplo: desmontar a estrutura criminosa interna e, ao mesmo tempo, recuperar credibilidade no cenário externo.

Avanços e persistências

Apesar dos números expressivos, especialistas alertam que o combate ao captagon está longe de ser definitivo. Parte significativa da produção e do contrabando migrou para regiões fora do controle estatal, incluindo áreas dominadas por grupos curdos e milícias no sul da Síria. Nessas zonas, redes criminosas continuam operando com relativa autonomia, muitas vezes apoiadas por corrupção local e por conexões transfronteiriças.

Além disso, a própria estrutura de segurança síria carrega heranças do envolvimento anterior no tráfico, tornando o processo de limpeza institucional um desafio complexo. Analistas da ONU destacam que, sem reformas profundas na administração e cooperação internacional mais robusta, os esforços podem resultar apenas em deslocamento geográfico da produção, e não em sua eliminação real.

Riscos e críticas

O plano também enfrenta resistências internas. Parte da elite síria que se beneficiava financeiramente do comércio ilícito pode dificultar sua implementação, enquanto comunidades locais, dependentes indiretamente dessa economia paralela, veem o combate como uma ameaça a sua sobrevivência imediata. Além disso, o risco de repressão seletiva e de abusos durante as operações gera preocupação em organizações de direitos humanos, que alertam para potenciais efeitos colaterais sobre civis.

Implicações regionais e diplomáticas

A ofensiva de al-Sharaa tem também um componente estratégico: sinalizar boa-fé a países árabes e ao Ocidente em busca de reaproximação política e econômica. O Golfo Pérsico, principal mercado consumidor de captagon, observa de perto os desdobramentos. Caso a redução da produção se confirme de forma duradoura, pode abrir espaço para negociações bilaterais em áreas como energia, reconstrução e até segurança alimentar.

Por outro lado, rivais regionais permanecem céticos. Para a Jordânia, que há anos denuncia a infiltração de carregamentos de captagon em seu território, o governo sírio ainda precisa provar que tem condições de controlar fronteiras porosas e redes militares ligadas ao tráfico.

O futuro do combate às drogas na Síria

O desmantelamento do captagon não é apenas uma questão de saúde pública ou de segurança: trata-se de redefinir o contrato social em um país devastado por mais de uma década de guerra. Reduzir a dependência econômica de atividades ilícitas, reconstruir instituições e reconquistar confiança externa são etapas interligadas desse processo.

Se Ahmed al-Sharaa conseguir consolidar avanços, poderá dar início a um ciclo de normalização diplomática e a uma reinserção da Síria no sistema econômico regional. Caso contrário, a sombra do “narco-estado” continuará a assombrar qualquer tentativa de reconstrução nacional.

Nos próximos meses, observadores internacionais e países vizinhos devem intensificar o monitoramento das rotas de tráfico e avaliar a consistência da política síria. Há também expectativa de que novas formas de cooperação regional contra o narcotráfico sejam discutidas, colocando a Síria à prova em sua tentativa de virar a página.

Conclusão

O combate ao captagon na Síria é mais do que uma operação policial: representa um teste de governança, legitimidade e inserção internacional para o governo de Ahmed al-Sharaa. Embora os resultados iniciais — apreensões recordes e queda significativa na produção — sejam positivos, desafios internos, resistência política e persistência de rotas fora do controle governamental ainda ameaçam a eficácia da operação.

O futuro depende não apenas da continuidade das ações internas, mas também da cooperação regional e do monitoramento internacional, que serão cruciais para garantir que a Síria consiga romper definitivamente com o legado do “narco-estado” e reconstruir sua credibilidade econômica e diplomática.

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