
Nova estratégia monetária sinaliza realinhamento geopolítico e busca por alívio econômico
A Síria planeja imprimir uma nova moeda nacional nos Emirados Árabes Unidos (EAU) e na Alemanha, encerrando uma década de dependência da Rússia para a produção de cédulas, conforme revelado por fontes próximas ao governo interino de Damasco. A decisão representa uma reorientação estratégica em meio ao afrouxamento parcial das sanções ocidentais e à aproximação crescente com potências do Golfo e da Europa.
Essa iniciativa ocorre paralelamente à assinatura de um acordo inicial de US$ 800 milhões com a empresa portuária DP World, dos Emirados, para desenvolver o porto de Tartus — o primeiro grande contrato econômico desde o anúncio do presidente dos EUA, Donald Trump, sobre a suspensão de sanções financeiras contra a Síria.
Mudança histórica no papel da moeda síria
Um dos aspectos mais simbólicos da nova impressão monetária será a remoção do rosto de Bashar al-Assad de uma das notas púrpuras ainda em circulação. A medida sinaliza uma tentativa do novo governo sírio de romper com a imagem do regime anterior, que entrou em colapso após a fuga de Assad para a Rússia em dezembro do ano anterior.
Durante os 13 anos de guerra civil, o regime havia dependido da Rússia para a impressão da moeda, após o rompimento de contratos com empresas europeias motivado pelas sanções da União Europeia. Com o afrouxamento das sanções europeias em fevereiro de 2025, especialmente no setor financeiro, abriu-se a possibilidade de retomar acordos com empresas ocidentais de impressão monetária.
Fontes sírias confirmaram que a empresa Oumolat, com sede nos Emirados, está em negociações avançadas para assumir parte da produção. Autoridades do Banco Central e do Ministério das Finanças visitaram a companhia neste mês. Na Alemanha, as empresas Giesecke+Devrient e Bundesdruckerei manifestaram interesse, embora a segunda tenha negado oficialmente qualquer envolvimento até o momento.
Escassez de moeda e crise bancária
O país enfrenta uma grave escassez de cédulas, que tem paralisado o setor bancário. Enquanto autoridades alegam que cidadãos estariam “estocando” a moeda em casa, banqueiros acusam o governo de restringir intencionalmente a circulação, numa tentativa de manipular o câmbio e conter a hiperinflação.
Muitos bancos recusam saques, inclusive de empresas, e cidadãos relatam dificuldades para acessar suas economias. Isso ocorre em meio a uma onda de importações baratas, que pressionam o setor produtivo local e agravam o desemprego.
No mercado paralelo, o dólar, que chegou a 15.000 libras sírias durante os últimos meses de Assad, recuou para cerca de 10.000 libras após o anúncio das mudanças no governo e das novas medidas econômicas. Ainda assim, a moeda segue extremamente desvalorizada — em 2011, antes da guerra, um dólar valia apenas 50 libras sírias.
Acordos estratégicos e pressão internacional
A cooperação com os Emirados e a Alemanha representa um realinhamento das prioridades geopolíticas sírias. Embora o novo governo mantenha laços pragmáticos com a Rússia — que continua fornecendo trigo, combustível e dinheiro em espécie —, busca reduzir a influência de Moscou, especialmente nas áreas sensíveis do sistema monetário e da infraestrutura portuária.
Esse movimento ocorre em meio à estratégia da União Europeia de limitar a presença russa no Oriente Médio, em meio à guerra na Ucrânia. A reabilitação parcial da Síria por atores europeus e do Golfo é vista como um instrumento para conter Moscou, enquanto Damasco tenta capitalizar esse reposicionamento para acelerar sua reconstrução.
Perspectivas e desafios
Especialistas alertam que, apesar das mudanças, os desafios estruturais da economia síria permanecem imensos. Segundo o economista sírio radicado na Europa, Layth al-Khatib, “a impressão de moeda fora da Rússia é um passo importante, mas não substitui reformas fiscais, combate à corrupção e reestruturação produtiva.”
A população continua vivendo sob condições precárias. “O banco não me deixa sacar o que tenho guardado há meses. Dizem que é por causa das novas cédulas, mas o mercado não aceita as antigas”, relata Fadia, professora em Homs. Esse relato reflete a frustração generalizada diante de um sistema financeiro estagnado.
Conclusão
A decisão de imprimir uma nova moeda fora da Rússia simboliza uma virada estratégica do novo governo sírio em busca de autonomia econômica e reposicionamento geopolítico. Ao estreitar laços com Emirados Árabes Unidos e Alemanha, Damasco não apenas se afasta da dependência histórica de Moscou, mas também explora as brechas abertas pelo relaxamento das sanções ocidentais, especialmente no setor financeiro.
O afastamento de Bashar al-Assad, refletido na retirada de sua imagem das cédulas, sinaliza uma tentativa de refundar a legitimidade política interna e buscar maior aceitação externa — um movimento que pode agradar tanto ao Golfo quanto a potências europeias, interessadas em reduzir a influência russa no Oriente Médio em meio à guerra na Ucrânia.
Contudo, a situação econômica continua precária. O colapso cambial, a escassez de moeda em circulação e o impacto social de anos de guerra criam um cenário no qual qualquer mudança simbólica só terá efeito se acompanhada de reformas estruturais reais. A impressão de novas cédulas pode aliviar o problema imediato de liquidez, mas não resolve o desafio mais profundo de reconstruir confiança, produção interna e estabilidade monetária.
No tabuleiro geopolítico, a reconfiguração do sistema monetário sírio é mais do que uma medida econômica: é um movimento calculado de reposicionamento estratégico, no qual Damasco tenta se reerguer como ator relevante, ainda que em um campo minado por interesses regionais e internacionais divergentes.
Atualização
Fontes recentes indicam que o governo sírio avançou nas negociações com a empresa Oumolat, reforçando a tendência de diversificação da impressão monetária. Paralelamente, observadores internacionais destacam que a economia síria segue altamente vulnerável às flutuações do mercado negro, cuja influência na economia real dificulta o controle estatal da política monetária.
Além disso, o desenvolvimento do porto de Tartus pelo DP World, previsto para ser concluído em 2027, poderá incrementar o comércio exterior sírio, reduzindo a dependência logística da Rússia e ampliando a integração econômica com o Golfo.
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