
Em meio à tentativa de reconstruir a Síria após anos de guerra, o presidente interino Ahmed Sharaa emitiu uma declaração contundente: os assassinatos em massa de membros da comunidade alauíta ameaçam a unidade nacional e não serão tolerados. Em sua primeira entrevista global, Sharaa destacou que a justiça será aplicada de forma rigorosa, mesmo que isso signifique punir aliados próximos, numa demonstração de que “a Síria é um Estado de Direito”.
Um Cenário de Violência e Incerteza
Desde a derrubada de Bashar al-Assad, a Síria enfrenta uma realidade caótica marcada por confrontos sectários e rivalidades internas. Nos últimos dias, intensos confrontos entre autoridades sunni e facções alauítas deixaram centenas de mortos e quase mil civis alauítas vítimas de ataques de retaliação. Segundo dados do Observatório Sírio para os Direitos Humanos, os números alcançaram 973 vítimas alauítas em meio a confrontos sangrentos, ressaltando o quanto a violência ameaça a frágil estabilidade do país.
Imagens chocantes de execuções e vídeos difundidos nas redes sociais contribuíram para um clima de indignação e temor. Em meio a esse cenário, Sharaa enfatizou que tais atos de violência, que representam “o derramamento de sangue sem justiça”, são incompatíveis com o seu projeto de unificação nacional.
A Vontade de Justiça e a Criação de Comitês Independentes
Em sua declaração, proferida do palácio presidencial em Damasco, Sharaa reafirmou o compromisso de que todos os responsáveis pelos assassinatos serão responsabilizados, independentemente de sua proximidade com o novo governo. Para tanto, foram criados dois comitês independentes:
- Comitê de Investigação: Responsável por apurar, em 30 dias, as circunstâncias dos massacres e identificar os culpados, garantindo que a justiça seja feita sem interferências.
- Comitê de Paz e Reconciliação: Voltado para preservar a paz civil e prevenir futuras retaliações, pois, como salientou Sharaa, “sangue gera sangue”.
Essa iniciativa inédita, que inclui representantes da comunidade alauíta, busca restaurar a confiança da população em meio a um contexto de amargura e desconfiança histórica.
A Mensagem de Sharaa e os Desafios para a Unidade Nacional
Sharaa destacou que os assassinatos perpetrados contra os alauítas não apenas desestabilizam a ordem interna, mas comprometem seu projeto de reconciliação nacional. Em suas palavras, “lutamos para defender os oprimidos e não aceitaremos que sangue seja derramado injustamente, sem que os responsáveis prestem contas.” Essa postura firme é vista como essencial para atrair o apoio da comunidade internacional e para romper com ciclos de violência que, por décadas, alimentaram divisões sectárias.
No entanto, o líder interino enfrenta um desafio monumental: unificar um país marcado por 14 anos de guerra, onde diferentes comunidades – incluindo sunitas, alauítas, drusos, cristãos, xiitas, curdos e armênios – possuem interesses e ressentimentos históricos. A violência recente nas cidades costeiras de Latakia, Banyas e Jableh, que forçou milhares de alauítas a fugir, evidencia a urgência de uma estratégia que, além de punir os culpados, promova a reconciliação e a construção de uma nova identidade nacional.
Repercussão Internacional e Complexas Relações Externas
A declaração de Sharaa ocorre em um momento de tensão internacional e de redefinição das alianças na região. Em sua entrevista, o líder sírio ressaltou que, desde a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, não houve contato direto entre seu governo e a administração americana. Além disso, reiterou apelos para que Washington suspenda as sanções impostas durante o regime de Assad, ressaltando que a segurança e a prosperidade econômica da Síria dependem dessa reavaliação.
Simultaneamente, Sharaa sinalizou abertura para o restabelecimento de relações com Moscou – tradicional aliado de Assad – e para a revisão dos acordos que garantem a presença russa em bases estratégicas no Mediterrâneo, como a Naval de Tartous e a base aérea de Hmeimin. Essa aproximação é vista como um movimento para consolidar a soberania síria, equilibrando os interesses internos com as pressões externas.
As reações no exterior são diversas:
- Israel: Criticou veementemente o novo líder, classificando-o de “jihadista terrorista da escola da Al-Qaeda” e ameaçando sua atuação, enquanto Sharaa minimizou tais acusações, chamando-as de “absurdas” e destacando a violência praticada por Israel em Gaza e no Líbano.
- Países do Golfo e Turquia: Estados como Arábia Saudita, Qatar e Turquia manifestaram apoio a Sharaa, vendo nele uma alternativa para restaurar a ordem na Síria.
- Rússia e Irã: Embora tenham expressado preocupação com o recente surto de violência, ambas as nações continuam sendo peças-chave na complexa engrenagem que mantém o status quo sírio, mantendo influência e, em alguns casos, evitando se envolver diretamente na investigação dos massacres.
Desafios Internos: Situação Econômica, Humanitária e Infraestrutura
Além das tensões sectárias, a Síria enfrenta uma profunda crise econômica e humanitária. A guerra prolongada devastou a infraestrutura do país, deixando cidades e comunidades sem serviços básicos, e o colapso da economia agravou o sofrimento do povo sírio.
- População Civil: A população vive em meio a incertezas. Famílias que perderam entes queridos e foram deslocadas buscam abrigo em áreas temporárias, enquanto a desconfiança em relação ao governo e o medo de novas retaliações impedem uma recuperação imediata do tecido social.
- Infraestrutura: Hospitais, escolas, estradas e redes de abastecimento foram severamente impactados, dificultando os esforços de reconstrução e o acesso a cuidados básicos de saúde. As condições precárias dos serviços públicos e a escassez de recursos essenciais evidenciam o enorme desafio que o novo governo enfrenta para restabelecer a normalidade e promover a recuperação econômica.
Perspectivas Futuras: Cenários para os Próximos Meses e Anos
O governo de Sharaa encara um futuro incerto, mas com a firme determinação de consolidar a unidade nacional e promover a estabilidade. Entre os cenários possíveis, destacam-se:
- Reconciliação Nacional: Se as medidas de justiça e os comitês de investigação conseguirem restaurar a confiança entre as comunidades, há potencial para um processo de reconciliação que pode pavimentar o caminho para a paz duradoura.
- Risco de Novos Conflitos: Por outro lado, a complexa teia de ressentimentos sectários e a competição por recursos podem reativar conflitos antigos. Caso a integração das SDF e as ações de reparação não incluam todas as vozes da sociedade, a possibilidade de novas tensões e violência permanece alta.
- Desafios Econômicos e Reconstrução: A recuperação econômica dependerá fortemente da remoção das sanções e do restabelecimento da normalidade nas relações internacionais. A reconstrução da infraestrutura e a revitalização dos serviços públicos serão essenciais para garantir que a população sinta os benefícios da paz e da estabilidade.
- Influência Internacional: A postura dos principais atores regionais e globais – como os EUA, Rússia, Irã, e os países do Golfo – continuará a influenciar o equilíbrio de poder na Síria. O sucesso do governo Sharaa pode, inclusive, redefinir alianças e gerar novos arranjos geopolíticos que afetarão toda a região.
Em suma, o caminho à frente para a Síria é repleto de desafios, mas também de oportunidades. A capacidade do governo de lidar com a violência sectária, reconstruir a economia e promover a inclusão de todas as comunidades será decisiva para determinar se o país conseguirá finalmente emergir de um dos períodos mais sombrios de sua história.
Conclusão
O pronunciamento de Ahmed Sharaa sobre os assassinatos de alauítas e sua firme promessa de justiça marcam um ponto de inflexão na tentativa de reconstruir a Síria. Com a criação de comitês independentes e medidas que buscam unir um país dilacerado, o novo líder tenta, simultaneamente, enfrentar desafios internos e lidar com as complexas relações internacionais. O sucesso dessa empreitada dependerá não apenas da efetiva responsabilização dos culpados, mas também da capacidade de promover uma reconciliação abrangente, restaurar a infraestrutura devastada e reerguer a economia, garantindo que o sofrimento do povo sírio se transforme em um compromisso coletivo por um futuro de paz e prosperidade.
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