
Na manhã de 14 de maio de 2025, as hostilidades mais intensas em anos em Trípoli, capital da Líbia, cessaram aproximadamente uma hora após o Governo de Unidade Nacional (GNU) decretar um cessar‑fogo e destacar unidades neutras da polícia em pontos sensíveis da cidade. O acordo de calma segue o pior surto de violência desde 2023, quando facções rivais voltaram a trocar tiros nas ruas da capital.
Contexto e Desencadeamento
Os confrontos se iniciaram na noite de 12 de maio, após o assassinato de Abdel Ghani al‑Kikli, conhecido como “Ghaniwa”, comandante da milícia Stabilisation Support Apparatus (SSA), numa reunião no campo Tekbali. Sua morte, atribuída à Brigada 444 – aliada ao primeiro‑ministro Abdulhamid al‑Dbeibah – desencadeou uma série de ataques de retaliação da SSA contra posições pró‑governo em bairros como Abu Salim, Ras Hassan e Salah Eddin.
Breve Histórico das Principais Facções
Brigada 444
- Origem: Formada em 2012, logo após a queda de Gaddafi, como parte de uma das coalizões que ajudaram a retomar Trípoli do General Haftar.
- Evolução: Reconhecida pelo GNU em 2022 como força oficial de “manutenção da ordem” na capital, passou a atuar sob o comando direto do Ministério da Defesa de Dbeibah.
- Poder: Destacada pela disciplina interna e acesso a armamento pesado, tornou‑se o principal instrumento militar do primeiro‑ministro para conter outras milícias.
Stabilisation Support Apparatus (Aparelho de Apoio à Estabilização )(SSA)
- Origem: Criada em 2018 por Abdul Ghani al‑Kikli com respaldo de setores do antigo Governo de Acordo Nacional, apresentava‑se como força “antiterrorismo” e de “estabilização”.
- Atuação: Controlava postos de controle em bairros estratégicos de Trípoli e gerenciava a Agência de Segurança Interna, acumulando poder financeiro via taxas de passagem de migrantes.
- Declínio: Após acusações de tortura e violações dos direitos humanos, sua influência começou a decair com a ascensão política de Dbeibah e o reconhecimento de outras brigadas pelo GNU.
Análise da Centralização de Poder por Dbeibah
A ofensiva coordenada das Brigadas 444 e 111 sugere uma estratégia clara de reconstrução do monopólio da força em Trípoli sob o comando de Dbeibah.
“Ghaniwa era de fato o rei de Trípoli. Seus homens controlavam a agência de segurança interna e até a distribuição de dinheiro do banco central”, explica Tarek Megerisi, do European Council on Foreign Relations .
“Isso abre caminho para níveis sem precedentes de consolidação territorial em Trípoli e um número cada vez menor de grupos”, complementa Emad Badi, do Atlantic Council .
Após assegurar o controle de depósitos de armas e instalações-chave da SSA, Dbeibah aproveitou para nomear um novo chefe para a Agência de Segurança Interna e dissolver a Diretoria de Combate à Migração Ilegal, numa tentativa de reformar o setor de segurança e fortalecer a autoridade estatal. Embora tais medidas reforcem o Executivo, correm risco de aprofundar ressentimentos em facções excluídas — notadamente a Special Deterrence Force (Rada), ainda não integrada ao GNU.
Impacto Humano e Danos Materiais
- Mortes e feridos: agências médicas locais confirmam pelo menos 6 mortos e dezenas de feridos, incluindo civis e combatentes de ambos os lados, entre os dias 12 e 14 de maio.
- Deslocamentos: famílias inteiras buscaram abrigo em escolas, mesquitas e estruturas públicas, temendo bombardeios e tiroteios repentinos. Estima‑se que centenas de pessoas ficaram temporariamente deslocadas.
- Infraestrutura: ruas bloqueadas por carros queimados, prédios crivados de balas e suspensão temporária de voos no Aeroporto de Mitiga, embora as principais instalações petrolíferas no sul e no leste do país não tenham sido afetadas.
Citações de Especialistas
Jalel Harchaoui (Instituto Real de Serviços Unidos de Defesa):
“A queda de Ghaniwa representa o colapso de uma das últimos barreiras ao domínio total de Dbeibah sobre Trípoli, mas isso dificilmente levará à paz sem um pacto com os demais senhores da guerra.”
Mohamed Eljarh (analista de segurança norte‑africana):
“O risco agora é uma reação em cadeia: facções do oeste podem chamar reforços de Zawiya e Misrata, transformando um confronto localizado numa nova guerra por procuração.”
Perspectivas e Desafios
Apesar da trégua, o futuro político em Trípoli permanece incerto. A real integração da Rada e de outras milícias dissidentes ao processo político será crucial para evitar novos surtos de violência. Além disso, o envolvimento contínuo de potências estrangeiras — principalmente Turquia e Rússia — poderá influenciar decisivamente o equilíbrio de forças na capital e as negociações de poder.
Conclusão
O breve cessar‑fogo de 14 de maio de 2025 oferece uma janela de oportunidade para consolidar reformas no setor de segurança e promover um diálogo político inclusivo. Contudo, sem a participação efetiva de todas as facções e um comprometimento real com desarmamento e responsabilização, a Líbia corre o risco de retornar a ciclos de conflito que há mais de uma década minam sua estabilidade.
Faça um comentário