Rumo à Votação: Análise da Eleição Nacional em Bangladesh para Abril de 2026

Muhammad Yunus participa do Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, em janeiro de 2025.
Muhammad Yunus, chefe interino do governo de Bangladesh, durante o 55º Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, em 23 de janeiro de 2025. Foto: REUTERS/Yves Herman

Em 6 de junho de 2025, o líder interino de Bangladesh, Muhammad Yunus, anunciou que o país realizará eleições nacionais em algum dia da primeira quinzena de abril de 2026. Esta decisão encerra meses de incerteza sobre o calendário eleitoral desde a deposição de Sheikh Hasina em agosto de 2024, quando protestos estudantis massivos exigiram mudanças profundas no sistema de cotas e denunciações de abusos de poder do governo anterior. O presente artigo revisa, de forma analítica e jornalística, o contexto político que levou ao anúncio, a composição e os desafios do governo interino, o cenário das principais forças partidárias, os obstáculos logísticos e sociais para o pleito de 2026 e as perspectivas de legitimidade democrática em Bangladesh.

Contexto e Anúncio Oficial

No discurso televisionado de 6 de junho de 2025, Yunus declarou:

“Após revisar as atividades de reforma em andamento…, anuncio hoje ao povo que a próxima eleição nacional será realizada em qualquer dia na primeira metade de abril de 2026.”

O anúncio visa formalizar o retorno ao calendário democrático após um período de governo interino, mas ainda agrega incertezas, pois a Comissão Eleitoral de Bangladesh não divulgou detalhes sobre o cronograma — como datas para registro de eleitores, definição de circunscrições e normas para observação nacional e internacional. O próprio Yunus afirmou que “o roteiro detalhado será divulgado em momento oportuno”, reforçando que não concorrerá às eleições e tampouco se alinha a qualquer partido.

A Revolta de Julho de 2024 e a Queda de Sheikh Hasina

Origem dos Protestos

Em 1º de julho de 2024, estudantes de diversas universidades iniciaram manifestações exigindo revisão de um circular de 2018 que fixava cotas em cargos públicos para filhos de veteranos da Guerra da Independência. A medida foi considerada injusta pelos estudantes de famílias sem esse privilégio, gerando indignação pela percepção de perpetuação de elites políticas.

Escalada de Violência e Renúncia de Hasina

A repressão policial intensificou-se ao longo de julho, atingindo seu ápice quando confrontos resultaram na morte de centenas de manifestantes — estimativas governamentais falam em 834 vítimas, ao passo que agências internacionais contabilizaram mais de mil mortos. Esse nível de violência gerou ruptura entre setores das Forças Armadas e o governo de Hasina. Em 5 de agosto de 2024, diante de ameaças de processo político e da mobilização popular, Hasina renunciou e fugiu para a Índia, marcando um momento sem precedentes na política de Bangladesh.

O Governo Interino de Muhammad Yunus

Perfil e Nomeação

Muhammad Yunus, 84 anos, Nobel da Paz de 2006 e fundador do Grameen Bank, assumiu como “conselheiro-chefe” (equivalente a primeiro-ministro interino) em 8 de agosto de 2024, nomeado pelo presidente Mohammad Shahabuddin após a renúncia de Hasina. Apesar de sua trajetória como economista social, Yunus chegou ao cargo sem filiação partidária e com denúncias de casos judiciais que ele atribuiu a motivações políticas.

Principais Diretrizes e Reformas

Desde a posse, o governo interino justificou a necessidade de reformas no sistema eleitoral, no Judiciário e na administração pública antes da convocação do pleito, argumentando tratar-se de “passos fundamentais para garantir eleições livres, justas e participativas.” Comissões foram criadas para revisar — entre outros temas — o cadastro de eleitores, os processos disciplinais de funcionários públicos e a legislação anticorrupção.

Proibições Partidárias

  • Em abril de 2025, a Comissão Eleitoral suspendeu o registro do Awami League (AL), partido de Sheikh Hasina, sob a alegação de que suas atividades representavam “risco à segurança nacional”. Essa suspensão foi oficializada pela aplicação da Lei Antiterrorismo, vedando ao AL disputar eleições até que resolvesse pendências legais.
  • Em maio de 2025, a Suprema Corte restaurou o registro do Jamaat-e-Islami, principalmente para permitir que partidos islâmicos, antes banidos por ligações a crimes de guerra, pudessem participar do pleito.

Descontentamento Social Recente

Em junho de 2025, funcionários públicos organizaram protestos por reajuste salarial e protestaram contra demissões sumárias decorrentes de condutas classificadas como “mau comportamento”, sem trâmites processuais regulares. Tais paralisações elevaram o clima de insatisfação e reforçaram críticas de que o governo interino avançava em reformas administrativas sem diálogo amplo com categorias de servidores.

O Cenário Partidário e as Forças em Disputa

Awami League (AL)

Durante mais de duas décadas sob o comando de Sheikh Hasina, o AL foi responsável por transformar a economia de Bangladesh em uma das que mais cresciam no mundo em termos de PIB. No entanto, a gestão foi marcada por acusações de crises de direitos humanos, perseguição a opositores políticos e controle da mídia estatal. Nas eleições de janeiro de 2024, Hasina conquistou o quarto mandato consecutivo, mas o pleito foi amplamente boicotado pela oposição, com líderes do Bangladesh Nationalist Party (BNP) presos ou no exílio.

Com a suspensão do registro em abril de 2025, o AL encontra-se proibido de realizar campanhas, impedindo sua presença formal na preparação do pleito de 2026. Em resposta, membros da base do partido realizaram protestos pontuais em meados de 2025, exigindo o restabelecimento dos direitos políticos de Hasina e de dirigentes locais.

Bangladesh Nationalist Party (BNP) e Khaleda Zia

O BNP, maior força de oposição histórica do AL, intensificou sua articulação política a partir de janeiro de 2025, quando Khaleda Zia, ex-primeira-ministra, teve sua condenação por corrupção de 2008 anulada pelo Supremo Tribunal, tornando-se elegível para concorrer.

No entanto, o partido ainda se recupera do período de repressão que começou em 2023. Líderes do BNP pressionam por uma data de votação antecipada (originalmente propuseram dezembro de 2025), alegando que um intervalo tão longo sob governo não eleito precariza a estabilidade econômica e social do país — sobretudo no contexto do Ramadan, previsto para março/abril de 2026, que pode complicar logística e moral durante a campanha eleitoral.

Partidos Emergentes e Coalizões

  • National Citizen Party (NCP): Surgido dos protestos de 2024 como força associada ao governo interino, o NCP vem atraindo militantes jovens e acadêmicos insatisfeitos com o bipartidarismo histórico. Critica-se, porém, que receba favorecimentos tácitos do Executivo de Yunus.
  • Jamaat-e-Islami: Após a restauração de seu registro em maio de 2025, o partido islâmico prepara-se para disputar cadeiras parlamentares, especialmente nas áreas rurais onde mantém alguma base de apoio. Sua inclusão no pleito levanta preocupações de organizações que acompanham direitos humanos, dada a associação histórica de lideranças do Jamaat a crimes de guerra durante a independência do país em 1971.

Preparativos e Desafios Logísticos para Abril de 2026

Atualização do Cadastro de Eleitores

A revisão do banco de dados de eleitores (voter list) é uma tarefa complexa, pois envolve:

  1. Exclusão de nomes falsos ou duplicados: Muitas listas sofreram distorções após tumultos de 2024, quando documentos foram queimados ou extraviados durante confrontos.
  2. Inclusão de novos eleitores jovens: Com uma população próxima de 173 milhões, Bangladesh tem uma taxa de natalidade elevada, gerando milhares de novos eleitores a cada ano.

Estima-se que o recadastramento biométrico comece em janeiro de 2026, concluindo em fevereiro, para viabilizar impressão de cédulas e logística de distribuição em distritos remotos, sobretudo nas regiões pantanosas próximas à fronteira com Mianmar.

Infraestrutura Eleitoral e Observação Internacional

  • Estabelecimento de Mesas de Votação: Prevê-se a criação de mais de 300.000 seções eleitorais, incluindo 100% de cobertura em áreas rurais — reflexo das demandas de inclusão geradas nos protestos de 2024.
  • Segurança e Treinamento de Mesários: A Polícia Rápida (RAB) e a Rainha Armaday (Força Terrestre) participarão de treinamento conjunto para atuar em áreas sensíveis, onde tensões sectárias e partidárias podem gerar violência.
  • Observação Internacional: Já existem contatos preliminares com Missões da ONU, da União Europeia (UE) e de países vizinhos (Índia e Paquistão) para enviar observadores. A presença desses agentes será essencial para conferir transparência, principalmente se o Awami League continuar proibido de participar plenamente.

Obstáculos Políticos e Sociais

Riscos de Boicote e Deslegitimação

A exclusão do Awami League do pleito formal torna-o propenso a boicotes parciais — seus líderes em exílio integram a Personalitária Global de Solidariedade ao AL, pretendendo influenciar a opinião pública doméstica e internacional a fim de pressionar pela liberação de Hasina e pela suspensão das acusações judiciais contra membros do partido. Caso parte da base do AL decida não votar, a vitória de outros partidos pode ser contestada por ausência da principal força de massas, fragilizando a legitimidade.

Pressão de Grupos Sindicais e Setoriais

  • Servidores Públicos: Em maio e junho de 2025, servidores de diversos níveis protestaram por melhores salários e criticaram demissões sumárias sem processos administrativos regulares. Caso o governo não negocie reajustes orçamentários compatíveis, novas greves podem atrasar atividades municipais e distritais importantes para fins logísticos eleitorais.
  • Trabalhadores Têxteis e das Zonas Francas: Representam parcela significativa da economia — um eventual aumento de tarifas de energia ou impostos para bancar as reformas pode desencadear paralisações em massa. Esses setores já haviam aderido aos protestos estudantis de 2024, estimulados pela perspectiva de mudanças no sistema de cotas e por denúncias de más condições de trabalho.

Possível Radicalização e Conflitos Sectários

A reintrodução do Jamaat-e-Islami como ator formal exacerba tensões em áreas onde se registram episódios esporádicos de violência sectária — sobretudo em distritos com minorias religiosas vulneráveis. Organizações de direitos humanos têm alertado para o risco de novos confrontos, dado o histórico de militantes remanescentes que teriam participado de crimes de guerra em 1971.

Perspectivas e Impactos Pós-Eleitorais

Cenário de Coalizões e Governabilidade

Caso o pleito seja livre de incidentes graves, três cenários principais emergem:

  1. Vitória do BNP ou de Coligação Liderada pelo BNP: Khaleda Zia, a 79 anos, pode buscar alianças com partidos centrais e islâmicos moderados (por exemplo, partidos pequenos dissidentes do Jamaat). Contudo, há resistência interna devido ao histórico de corrupção de sua gestão anterior (2001–2006).
  2. Ascensão do National Citizen Party (NCP) ou Coalizões de Terceiros: Se o NCP consolidar base jovem urbana e setores acadêmicos, poderá reivindicar maioria em alianças com partidos regionais, apostando em plataformas anticorrupção e foco em reformas sociais.
  3. Governo de Unidade ou Tecnocrata Pós-PL 2026: Diante de fragmentação parlamentar, poderia emergir uma coalizão entre BNP, NCP e campos islâmicos moderados, abrindo espaço para ministros técnicos em carteiras estratégicas (Finanças, Planejamento, Justiça) para restaurar a confiança dos investidores estrangeiros.

Relações Exteriores e Alianças Regionais

  • Índia: Como parceira estratégica, a Índia segue de perto a transição, principalmente por questões de segurança na fronteira e pelo fluxo migratório. Nova Délhi já manifestou interesse em apoiar observadores independentes para legitimar o processo eleitoral.
  • China: Investidora em infraestrutura (rodovias, portos, energia), Pequim deseja manter cordialidade com o próximo governo, buscando garantir a continuidade de projetos no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI).
  • Organizações Multilaterais: O Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB) e o FMI condicionam novos empréstimos a um calendário eleitoral estável e a garantias de que o processo seja auditado, evitando retrocessos em governança pública.

Desafios Econômicos e Sociais

Retomada do Crescimento: Antes dos protestos, Bangladesh vinha registrando crescimento do PIB em torno de 7–8% ao ano. A crise política e as paralisações de 2024–2025 reduziram a confiança dos investidores, elevando o risco de depreciação da moeda local (taka) e alta de juros.
Reformas Sociais: O novo governo terá de enfrentar déficit habitacional nas áreas urbanas (particularmente em Dhaka) e escassez de mão de obra qualificada para a indústria têxtil, setor que responde por mais de 80% das exportações de bens manufaturados.
Inclusão de Grupos Marginalizados: A participação de mulheres e minorias étnicas (como os povos tribais do Chittagong Hill Tracts) no pleito será indicador-chave de legitimação democrática. A criação de cotas temporárias para candidaturas femininas e minoritárias está em debate no Parlamento interino desde abril de 2025.

Conclusão

O anúncio de eleições para abril de 2026, feito por Muhammad Yunus, representa um marco no processo de restauração democrática em Bangladesh, após a turbulência política de 2024 e a administração interina imposta pelos protestos estudantis. Apesar de seu prestígio internacional como economista social, o governo de Yunus enfrenta dúvidas sobre imparcialidade, especialmente por ter sancionado a suspensão do Awami League e por eventuais favorecimentos ao National Citizen Party.

Para que o pleito de 2026 seja efetivamente livre e justo, será imprescindível:

  1. Transparência da Comissão Eleitoral: Divulgação de cronograma rigoroso e amplo acesso a informações sobre cadastro de eleitores e configuração de circunscrições.
  2. Inclusão dos Partidos Principais: Revogação tempestiva de restrições contra o Awami League e garantias de que a BNP possa concorrer em igualdade de condições.
  3. Participação de Observadores Independentes: Ampliação da presença de missões da ONU, UE e de vizinhos (Índia, Paquistão) para validar resultados e mitigar suspeitas de manipulação.
  4. Envolvimento da Sociedade Civil: Organização de fóruns de debate, treinamentos de mesários e campanhas de educação eleitoral, visando reduzir o impacto de boicotes e fortalecer a confiança no processo democrático.

Se esses requisitos forem atendidos, Bangladesh pode consolidar um caminho de reconciliação política, retomada econômica e fortalecimento institucional. Caso contrário, o país arrisca prolongar suas fragilidades, com potencial de crises recorrentes e perda de credibilidade junto à comunidade internacional.

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