
Em pronunciamento na sexta-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, qualificou como “colher de chá” o volume de ajuda humanitária autorizado por Israel para a Faixa de Gaza, alertando que a população necessita de um dilúvio de suprimentos para sobreviver. Desde o fim do bloqueio de 11 semanas, 300 caminhões foram liberados para atravessar o posto de Kerem Shalom, mas apenas um terço dessa carga foi efetivamente transportada a armazéns internos, diante de condições de insegurança e combates em áreas-chave.
Contexto do Bloqueio e Retomada Parcial
- Bloqueio de Gaza: Iniciado em 2 de março de 2025, com o objetivo declarado de impedir o desvio de suprimentos por militantes do Hamas. Em 18 de maio, Israel suspendeu temporariamente a restrição, permitindo a entrada de ajuda — ainda que de forma limitada.
- Reabertura de corredores: Em 19 de maio de 2025, o acesso humanitário foi restabelecido, mas o fluxo permanece aquém das necessidades básicas da população.
O Novo Modelo de Distribuição e a Recusa da ONU
Israel e os EUA criaram a Gaza Humanitarian Foundation (GHF), prevendo:
- Segurança privada para escoltar cargas até “hubs” seguros.
- Equipes civis responsáveis pela distribuição local.
A ONU se recusou a participar, afirmando que o modelo viola os princípios de humanidade, imparcialidade, neutralidade e independência, essenciais ao Direito Internacional Humanitário.
Obstáculos à Distribuição Segura
- Insegurança persistente: Bombardeios e confrontos intermitentes impedem o trânsito contínuo de veículos.
- Desconfiança mútua: Temores de desvio de suprimentos por facções armadas e controle militar das rotas.
- Infraestrutura comprometida: Estradas danificadas, ausência de combustível e destruição de instalações logísticas.
Relatos em Primeira Pessoa
“No dia em que soubemos que finalmente chegaria uma carga, formamos fila na rua. Passaram apenas três caixas de água — para toda a vizinhança de 50 famílias. Acabei voltando para casa de mãos vazias; minha filha mais nova não dormiu sem beber um copo ontem à noite.”
– Fatima, mãe de três filhos em Khan Yunis
“Trabalho como médico voluntário no hospital Al-Shifa. Recebemos só dois kits básicos de antibióticos para centenas de feridos. Vi pacientes com feridas abertas esperando dias até ter qualquer medicação. Cada gota conta, mas às vezes nem isso chega.”
– Dr. Omar, 34 anos
“Minhas sobrinhas correram até o centro de distribuição, mas ouviram que ‘a comida já tinha acabado’. Voltaram chorando, diziam que sentiam muita fome. Nunca imaginei que um pedaço de pão se tornaria tão difícil de obter.”
– Leila, tia que abriga seis sobrinhos em Gaza City
Impacto Humanitário e Consequências de Longo Prazo
Dados recentes da ONU e agências parceiras revelam a gravidade da crise:
- Deslocamento: Mais de 599 mil pessoas foram forçadas a se deslocar novamente desde o colapso do cessar-fogo em 17–18 de março, incluindo 161 mil apenas entre 15 e 21 de maio.
- Fome e desnutrição: Mais de 9 mil crianças tratadas por malnutrição este ano e relatos de mortes por falta de alimentação adequada.
- Infraestrutura de saúde: Cerca de 94% dos hospitais foram danificados ou destruídos, comprometendo tratamentos essenciais e agravando o colapso do sistema de saúde.
- Mortes recentes: Pelo menos 60 civis mortos em 24 horas por ataques aéreos e bombardeios, incluindo zonas densamente povoadas como Khan Younis e Jabaliya.
Sem água potável, alimentos suficientes e insumos médicos, a população enfrenta epidemias, aumento de doenças crônicas e um trauma social que perdurará por gerações.
Análise: Caminhos para o “Fazer Direito”
- Respeito ao Direito Internacional Humanitário
- Garantir acesso direto e sem obstáculos a suprimentos essenciais, com supervisão de organismos neutros como a ONU e a Cruz Vermelha.
- Fortalecimento de Corredores Seguros
- Negociar pausas humanitárias e estabelecer corredores monitorados, permitindo entrega diária de caminhões em volume adequado.
- Parcerias Regionais
- Integrar Egito e Jordânia como facilitadores logísticos, diversificando pontos de entrada.
- Mobilizar doações e estoques de países árabes para complementar o que chega por Kerem Shalom.
- Mecanismos de Transparência
- Instalar unidade conjunta de verificação com representantes da ONU, ONGs e Estados-membros, garantindo rastreabilidade das cargas.
Conclusão
A metáfora da “colher de chá” expõe o abismo entre a magnitude da crise e a resposta autorizada. Para prevenir um colapso humanitário completo em Gaza, é imprescindível adotar um modelo transparente, neutro e eficaz, alinhado ao Direito Internacional. Só assim será possível transformar os 160 mil paletes estocados em vidas salvas e mitigar consequências que ecoarão por anos.
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