
O anúncio de que os Estados Unidos reduzirão suas bases militares na Síria reflete uma mudança estratégica significativa na política externa americana para o Oriente Médio. Conforme declarado pelo novo enviado especial para a Síria, Thomas Barrack, em entrevista publicada em 3 de junho de 2025, Washington pretende concentrar todo o seu contingente atual em apenas uma base, em vez das oito que mantinha até então. Essa decisão vem acompanhada de um reposicionamento diplomático, que inclui a retomada de contatos oficiais com o governo sírio em Damasco e incentivos para a integração das Forças Democráticas Sírias (SDF) às estruturas estatais, em meio a tensões regionais e desafios internos nos EUA para legitimar o avanço dessas mudanças.
Contexto Histórico e Justificativa de Washington
Desde o início da guerra civil síria em 2011, a estratégia dos EUA priorizou o combate ao grupo Estado Islâmico (EI) sem adotar uma postura militar ampla contra o regime de Bashar al-Assad. A presença de oito bases foi justificada pela necessidade de apoiar aliados locais—em especial as SDF—e conter ressurgimentos jihadistas em diferentes províncias, como Deir el-Zor e Hasakah. No entanto, Barrack afirmou que as políticas americanas na Síria ao longo dos últimos cem anos “não funcionaram”, justificando a reavaliação completa do desenho de presença militar e diplomática no país. Segundo ele, a consolidação geográfica e a redução de infraestrutura visam evitar custos logísticos elevados e limitar riscos políticos e de segurança, adotando um modelo de ação mais enxuto e adaptável ao contexto atual.
Atualização da Presença Militar Americana na Síria
Embora inicialmente tenha sido anunciado que os EUA passariam de oito para apenas uma base, fontes do Pentágono confirmaram que, em meados de 2025, ao menos três instalações ainda permanecem ativas enquanto o realinhamento é concluído. As três bases remanescentes estão localizadas majoritariamente na província de Hasakah, no nordeste da Síria, sendo parte delas concentra pontos de apoio logístico, armazéns de suprimentos e estruturas de comando avançado. O plano definido por Barrack prevê que, até o final de 2025, todas as tropas e equipamentos se reúnam em uma única base principal em Hasakah, permitindo economia de recursos e facilitação das operações de vigilância antiterrorismo. Paralelamente, reportagens indicam que equipamentos militares e veículos já começaram a se deslocar de Deir el-Zor e Al-Shaddadi rumo a Hasakah, consolidando a estratégia de retirada de algumas guarnições menos essenciais.
Esse redimensionamento ocorre em meio a reforços adicionais enviados pelas forças da coalizão, que têm movimentado cargas logísticas e militares para as bases no nordeste, reforçando setores-chave de vigilância contra células isoladas do EI e infraestrutura de defesa de pontos sensíveis, como campos de detenção de ex-combatentes do EI em Hasakah. Em 1º de fevereiro de 2025, foi reportado o envio de reforços por terra e ar para bases americanas em Remelan e Al-Shaddadi, evidenciando que, embora haja redução de pontos de presença, a capacidade de dissuasão contra o EI ainda é considerada prioritária pelo Pentágono
Reaproximação Diplomática com Damasco
Em maio de 2025, poucos dias após a nomeação de Barrack como enviado especial, o governo Trump surpreendeu ao suspender sanções econômicas contra o regime de Assad e autorizar a reabertura formal da Embaixada dos EUA em Damasco. Pela primeira vez desde 2012, a bandeira americana foi içada na residência do embaixador em Damasco, sinalizando o fim de um período de isolamento diplomático que durou mais de uma década. Essa reaproximação busca, segundo fonte oficial do Departamento de Estado, criar “mecanismos mínimos de diálogo para facilitar a reconstrução e evitar o vácuo de poder” que favoreceriam o Irã e a Rússia no pós-guerra sírio. Embora críticos argumentem que isso prejudica a pressão por mudanças democráticas e respeito a direitos humanos, defensores da medida apontam que, sem interação oficial, a gestão dos fluxos migratórios, da ajuda humanitária e de processos de desarmamento ficaria inviabilizada.
O Papel das Forças Democráticas Sírias (SDF)
As SDF, coalizão dominada pelas milícias curdas do YPG, mantém desde 2014 uma cooperação estratégica com os EUA para combater o EI. Barrack reiterou que as SDF são “um aliado fundamental” não apenas para a estratégia antijihadista, mas também para atender a exigências do Congresso Americano, que enxerga nas milícias curdas um vetor de estabilidade regional. O plano de integração dessas forças ao Exército sírio, acordado em dezembro de 2024 entre as SDF e o novo governo interino liderado por Ahmed al-Sharaa, segue em discussão técnica, mas enfrenta resistências turcas que alegam ligação direta entre o YPG e o PKK, organização classificada como terrorista por Ancara e pelos EUA.
Relatórios recentes indicam que o cronograma original, que previa a formalização dessa integração até o fim de 2025, foi postergado devido a discordâncias sobre a alocação de comandantes, jurisdição territorial e garantias de que as unidades curdas não manteriam autonomia armada ao oeste do rio Eufrates. Enquanto isso, ataques pontuais do EI em áreas desprotegidas, como incidentes registrados na província de Sweida em março de 2025, reforçam a necessidade de manter vigilância das SDF até que elas sejam plenamente incorporadas às forças regulares.
Implicações Regionais e Geopolíticas
A redução significativa da pegada americana na Síria redireciona o equilíbrio de poder local para atores como Rússia, Irã e Turquia. A Rússia, que já concentra sua presença militar em portos estratégicos como Tartus e na base aérea de Khmeimim, continua pressionando por retirada total das tropas americanas, alegando que essa presença é “incompatível com o direito internacional”. O Irã, por sua vez, amplia sua influência política através de milícias pró-governo em Damasco e nas bordas do vale do Eufrates, negociando com contratos de reconstrução em troca de apoio político e militar. A Turquia, preocupada com a eventual formação de um “curdistão autônomo” ao longo de sua fronteira, intensificou operações ofensivas contra posições das SDF, mesmo após o PKK declarar formalmente o fim do conflito armado em abril de 2025.
Nesse cenário, o redimensionamento americano pode ser interpretado tanto como uma vitória diplomática russa—incentivada pela declaração de vitória contra o EI em 2019—quanto como uma tentativa de Washington de redefinir prioridades no Oriente Médio, deslocando o foco para contenção do Irã e negociações com aliados regionais em outras frentes, como os Golfo Pérsico e o Afeganistão. Ao manter, ainda que reduzida, uma base em Hasakah, os EUA preservam capacidade de vigilância sobre rotas de oleodutos e controle de infraestrutura crítica, limitando o espaço de manobra de aliados de Teerã nos campos petrolíferos do nordeste sírio.
Desafios Internos e Pressões do Congresso Americano
A opinião interna nos EUA está dividida. Uma parte significativa do Congresso, especialmente parlamentares do Partido Republicano, pressionou nos últimos dois anos por uma retirada rápida das tropas, argumentando que “as missões indefinidas no Oriente Médio drenam recursos vitais” e que “o EI está praticamente derrotado”. Entretanto, grupos bipartidários de legisladores destacam que uma retirada precipitada pode permitir o retorno do EI, conforme alertou o então secretário de Defesa Lloyd Austin em fevereiro de 2025, que enfatizou a importância de manter “os campos de detenção de ex-combatentes sob controle” e “evitar caos que beneficie grupos extremistas”.
Além disso, setores do Congresso condicionam liberação de verbas para ajuda humanitária e reconstrução na Síria à manutenção de mecanismos de verificação de direitos humanos e combate efetivo a milícias líbias e iranianas. Assim, embora Trump tenha defendido historicamente a redução de envolvimentos militares externos, o ajuste fino de presença na Síria ainda depende de acordos orçamentários anuais, a aprovação de dotações específicas e de relatórios regulares sobre riscos de ressurreição do EI.
Tensões entre Turquia e EUA: o Desafio Curdo-Turco
O principal ponto de atrito bilateral envolve as tensões envolvendo a Turquia e as SDF. Ancara acusa as milícias curdas de empregar “táticas de procrastinação” para cumprir o pacto de integração ao Exército sírio, ao mesmo tempo em que mantém posições fortificadas a oeste do Eufrates, o que viola acordos pré-existentes com Washington e Damasco. Em maio de 2025, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan alegou que as SDF estariam “oficializando unions com o PKK” por meio de estruturas clandestinas, o que alimentou manobras diplomáticas para pressionar os EUA a desmantelarem definitivamente qualquer apoio direto às forças curdas.
Os EUA tentaram mediar um acordo de compromisso: as SDF passariam a operar sob comando formal do Exército sírio, mas com assessoramento técnico limitado de soldados americanos em treinamentos antiterror, desde que aleguem fidelidade ao governo central de Damasco. No entanto, a falta de garantias de que, após a integração, as unidades curdas não retornariam a operações independentes gerou protestos de Ancara e levou a ameaças de nova intervenção turca no nordeste sírio caso não haja garantias pontuais. Analistas apontam que esse impasse pode reabrir um ciclo de hostilidades, prejudicando o “foco antijihadista” pretendido por Washington.
Perspectivas para a Reconstrução e Influência Internacional
Com a suspensão parcial das sanções e a retomada de diálogo com Damasco, os EUA buscam participar indireta e seletivamente do processo de reconstrução. A estratégia prevista por Barrack inclui coordenação com agências multilaterais, como ONU e Banco Mundial, para a restauração de infraestrutura básica—redes elétricas, abastecimento de água e reparo de estradas principais—sob supervisão síria com “mínima presença americana”. Ainda assim, o ritmo lento de reconstrução reflete a cautela de investidores internacionais, que exigem garantias de segurança e estabilidade política em um contexto marcado pela influência russa e iraniana.
Enquanto isso, a Rússia consolida acordos com empresas estatais sírias para explorar petróleo no nordeste, ocupando um vácuo deixado pela redução gradual das forças americanas. O Irã, por sua vez, expande sua rede de milícias xiitas no sul da Síria, consolidando pontos de apoio logístico em Daraa e Suweida, em cooperação com facções pró-regime. Nesse cenário, a manutenção de uma base única em Hasakah permite que os EUA monitorem remotamente esses movimentos e ajudem a frear avanços do EI, mas não mais garantem influência direta nas negociações de reconstrução central, que agora se realizam essencialmente entre Damasco, Moscou, Teerã e Ancara.
Conclusão
A reorganização da presença militar americana na Síria, de oito para três bases com perspectiva de estabilizar em apenas uma, não é apenas um reposicionamento logístico, mas a materialização de uma nova concepção estratégica. Reconhecendo que “nenhuma das políticas dos últimos cem anos funcionou” segundo Barrack, os EUA buscam agora minimizar riscos diretos e custos operacionais, ao mesmo tempo em que tentam manter influência geopolítica por meio de parcerias-chave e diálogo mínimo com Damasco. A evolução desse processo dependerá de como Ancara, Moscou, Teerã e o próprio Congresso dos EUA reagirão aos desdobramentos, especialmente no que tange ao futuro das SDF e ao controle de áreas ricas em petróleo e rotas de contrabando. Mesmo reduzida, a presença americana permanecerá um componente central na equação de segurança do nordeste sírio, determinando se a queda parcial das ambições ocidentais dará lugar a um vazio de poder ou abrirá caminho para formas alternativas de governança e reconstrução.
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