União Europeia Defende Independência do Tribunal Penal Internacional Após Sanções dos EUA a Juízes

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, expressa apoio aos juízes do Tribunal Penal Internacional sancionados pelos EUA
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, reafirma apoio total aos juízes do Tribunal Penal Internacional após sanções impostas pelos Estados Unidos. [Omar Havana/AP]/ Al Jazeera

Em 5 de junho de 2025, o Secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, anunciou sanções econômicas contra quatro juízes do Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia. As autoridades americanas alegaram que esses magistrados teriam tomado “ações ilegítimas e infundadas” ao emitir mandados de prisão contra o Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e ao autorizar investigações sobre supostos crimes de guerra cometidos por tropas norte-americanas no Afeganistão. A decisão suscitou críticas generalizadas na comunidade internacional, com a União Europeia (UE) afirmando seu “apoio incondicional” à independência judicial e denunciando as sanções como uma ameaça ao Estado de Direito global.

Breve Histórico do TPI e as Relações com os EUA

Criado em 2002 pelo Estatuto de Roma, o TPI foi concebido para investigar e julgar indivíduos responsáveis por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra quando as cortes nacionais se mostram incapazes ou relutantes em fazê-lo. Embora os Estados Unidos tenham participado das negociações que resultaram no Estatuto, nunca ratificaram o tratado, chegando a se opor fortemente à jurisdição do TPI sobre militares norte-americanos na década de 2000. Ainda assim, houve momentos de cooperação pontual em investigações relativas a crimes cometidos em conflitos na África e no Leste Europeu.

Em fevereiro de 2025, o Presidente Donald Trump emitiu ordem executiva impondo sanções — incluindo congelamento de bens e proibição de entrada nos EUA — contra o próprio Procurador-Chefe do Tribunal, Karim Khan, após a Procuradoria do TPI anunciar investigação preliminar sobre supostos crimes de guerra de tropas americanas no Afeganistão. Na ocasião, analistas de direitos humanos alertaram que tais medidas enfraqueciam a independência judicial internacional e desencorajavam a cooperação de testemunhas e organizações de apoio às vítimas.

As Sanções dos EUA contra Quatro Juízes do TPI

Na nova rodada de sanções divulgada em junho, foram atingidos os seguintes magistrados:

  1. Solomy Balungi Bossa (Uganda)
  2. Luz del Carmen Ibáñez Carranza (Peru)
  3. Reine Alapini-Gansou (Benin)
  4. Beti Hohler (Eslovênia)

Esses juízes estiveram diretamente envolvidos em decisões que autorizaram mandados de prisão contra Netanyahu — sob a acusação de crimes de guerra em Gaza — e no prosseguimento da investigação sobre eventuais infrações por tropas americanas no Afeganistão. A inclusão na lista de pessoas especialmente designadas pelos EUA implica o bloqueio de qualquer ativo que possuam em jurisdição americana, além de dificultar o acesso a contas bancárias em instituições que utilizam screening ligado às sanções de Washington.

O Departamento de Estado justificou a medida como forma de “proteger a soberania nacional” e coibir o que considera “extrapolação do mandato” do TPI ao investigar pessoas não abrangidas pelo Estatuto de Roma — neste caso, cidadãos de países não-partes, como EUA e Israel. Segundo a nota oficial, o Tribunal estaria agindo de modo “politizado”, visado a aliados estratégicos dos Estados Unidos.

Reação da União Europeia

Posicionamento Oficial

No dia 6 de junho de 2025, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declarou que a UE “profundamente lamenta” as sanções aos juízes do TPI, reafirmando que o Tribunal “governa perpetradores dos crimes mais graves do mundo e dá voz às vítimas, devendo atuar sem qualquer pressão”.

António Costa, Presidente do Conselho Europeu, qualificou o TPI como um “pilar essencial da Justiça Internacional” e advertiu que as sanções ameaçam a independência do Tribunal e enfraquecem o sistema de justiça criminal global. Ele conclamou os Estados-Membros a defenderem a Corte de maneira firme e uníssona.

Ação Legislativa e Propostas Concretas

Em 12 de março de 2025, o Parlamento Europeu adotou a Resolução 2025/2528(RSP), na qual expressou “grande preocupação” com as medidas americanas e conclamou a Comissão Europeia a “ativar urgentemente o Regime de Bloqueio” (Blocking Statute). Essa legislação, revisada em 1998, tem por objetivo neutralizar sanções extraterritoriais impostas por países terceiros consideradas ilegítimas ou em conflito com o direito da UE. Caso ativado, o mecanismo torna ilegal a colaboração de empresas europeias com as sanções de Washington, podendo, inclusive, anular decisões judiciais estrangeiras e autorizar sanções contrárias a indivíduos ou entidades responsáveis pela imposição de medidas que afetem o interesse comunitário.

Juízes e promotores do TPI, bem como organizações da sociedade civil que fornecem suporte às vítimas, têm enfrentado dificuldades em manter cooperação institucional, sobretudo pela ameaça de bloqueios financeiros secundários por parte de bancos que adotam as listas de sanções dos EUA. Ao ativar o Regime de Bloqueio, a UE busca mitigar esse risco e garantir que nenhum operador europeu seja punido por prestar serviços essenciais ao Tribunal.

Visita do Presidente do TPI ao Parlamento Europeu

Em 19 de março de 2025, o Presidente do TPI, Juíza Tomoko Akane, esteve em Bruxelas para apresentar ao Subcomitê de Direitos Humanos (DROI) e ao Comitê de Assuntos Jurídicos (JURI) do Parlamento Europeu um relatório sobre o impacto das sanções americanas. Durante a audiência, a Juíza Akane ressaltou que, sem a proteção efetiva oferecida pela UE, o Tribunal correria risco de perder acesso a serviços bancários e de logística indispensáveis para suas investigações. Ela conclamou os eurodeputados a “não abandonar a esperança das vítimas” e a estender o alcance do Blocking Statute para incluir o TPI, evitando que a Corte fique vulnerável a medidas financeiras coercitivas.

Reações de Outros Atores Internacionais

Nações Unidas e Organizações de Direitos Humanos

Volker Türk, Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos, declarou-se “profundamente perturbado” com a decisão dos EUA, afirmando que “ataques contra juízes que exercem suas funções judiciais, em âmbito nacional ou internacional, violam diretamente o Estado de Direito e os valores que os EUA historicamente defendem”. Türk ressaltou que tais sanções têm efeito “corrosivo” na governança global e pediram a revogação das medidas.

A Human Rights Watch classificou as sanções como “um ataque ao sistema de Justiça Internacional” e advertiu que qualquer restrição ao funcionamento do TPI prejudica vítimas em várias regiões, em especial no Oriente Médio e no Afeganistão. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha também manifestou apreensão, alertando que a condição financeira dos juízes e funcionários do Tribunal pode comprometer investigações em andamento.

Respostas de Governos Regionais

  • França e Alemanha: o Ministério das Relações Exteriores francês declarou que “mobilizará todos os esforços” para assegurar a independência do TPI, enquanto o chanceler alemão observou que “enfraquecer o Tribunal é favorecer regimes autoritários que já estão sob investigação, como a Rússia, pela invasão da Ucrânia”.
  • Eslovênia: país de origem da juíza Beti Hohler, anunciou a “iniciativa imediata” para ativar o Blocking Statute, ressaltando que a inclusão de uma cidadã eslovena na lista de sanções dos EUA justifica a adoção de medidas de contrabalanço
  • Peru: governo peruano repudiou “veementemente qualquer medida que obstrua o trabalho de juízes dedicados a proteger vítimas de crimes graves” e afirmou que estudará ações diplomáticas em fóruns multilaterais para pressionar pela revogação das sanções.
  • Conselho de Direitos Humanos da UE: reuniu-se em 2 de junho de 2025 para avaliar propostas de sanções contra atores responsáveis por cercear a independência do TPI. Embora não tenha divulgado detalhes sobre eventuais medidas punitivas, a reunião serviu para estreitar a coordenação entre Estados-Membros e alinhar estratégias diplomáticas em organismos multilaterais.

Implicações Jurídicas e Geopolíticas

Jurisdição e Complementaridade

O Estatuto de Roma estabelece o princípio da complementaridade: o TPI só atua quando sistemas nacionais não investigam ou processam adequadamente crimes internacionais. Ao visar juízes que aprovaram investigações contra Estados não-partes, o TPI baseou-se em resoluções do Conselho de Segurança da ONU (caso Israel/Palestina, sob o Capítulo VII) e em aceitação ad hoc por Estados Partes (no caso do Afeganistão). Juristas especializados apontam que a jurisprudência do Tribunal corrobora a competência nesses cenários, invalidando a alegação de “extrapolação” do mandato. As sanções dos EUA, portanto, questionam práticas consolidadas de responsabilização internacional, desafiando um entendimento amplamente aceito no direito internacional contemporâneo.

Efetividade do Regime de Bloqueio

Embora a ativação do Blocking Statute represente uma demonstração política de solidariedade ao TPI, sua aplicação prática enfrenta obstáculos. Bancos europeus que utilizam sistemas de compliance baseados em listas de sanções dos EUA já sinalizaram receio de arcar com multas secundárias se violarem determinações americanas. Em episódios anteriores — como no caso das sanções a Cuba, Irã e, mais recentemente, à Rússia — empresas europeias foram punidas por manter operações com países ou entidades sancionadas pelos EUA, mesmo quando a UE considerava tais embargos ilegítimos. Assim, o êxito do bloqueio depende da disposição das instituições financeiras a desafiar Washington, o que é improvável sem garantias diplomáticas ou financeiras suplementares do bloco.

Cenário Geopolítico Global

A escalada de tensões entre Washington e Bruxelas ganha contornos delicados em um momento em que a OTAN prepara cúpula para dezembro de 2025, em Haia. A Holanda, que abriga o TPI, exerce pressões diplomáticas para que aliados europeus emitam declarações de repúdio e ofereçam amparo logístico e jurídico à Corte. A Rússia e outros atores revisionistas veem a crise como oportunidade para desacreditar o sistema multilateral de Justiça Internacional, intensificando campanhas de desinformação que questionam a legitimidade do TPI. Por outro lado, países do Sul Global — especialmente na África Subsaariana — alertam que a deslegitimação do Tribunal reforça a impunidade local, enfraquecendo processos de responsabilização em casos como República Centro-Africana e Moçambique.

Conclusão

As sanções dos Estados Unidos contra quatro juízes do Tribunal Penal Internacional desencadearam ampla reação internacional, com a União Europeia liderando esforços para preservar a independência e a integridade do Tribunal. A mobilização legislativa do Parlamento Europeu, o discurso gravíssimo da Juíza Tomoko Akane em Bruxelas e a perspectiva de ativação do Regime de Bloqueio demonstram que a UE considera tais sanções uma afronta não apenas ao TPI, mas ao próprio Estado de Direito global.

Em um cenário geopolítico fragmentado, a disputa entre os EUA e o TPI expõe a tensão entre soberanias nacionais e mecanismos multilaterais de prestação de contas. Se as sanções permanecerem em vigor, haverá riscos concretos de desmobilização de testemunhas, dificuldades operacionais para juízes e procuradores e desestímulo à cooperação com organizações que atuam em prol de vítimas. A longo prazo, a credibilidade do sistema de Justiça Internacional estará em jogo: a capacidade do TPI de continuar investigando e julgando crimes atrozes dependerá, cada vez mais, do suporte político e financeiro proporcionado pelos Estados Partes e por blocos regionais — especialmente a União Europeia.

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