
Em 4 de junho de 2025, Lee Jae-myung, do Partido Democrático da Coreia, tomou posse como presidente da República da Coreia em cerimônia realizada na Assembleia Nacional de Seul. Sua vitória — alcançada com 49,4% dos votos em eleição marcada pela maior participação desde 1997 — representa não apenas a derrocada do governo anterior, mas uma guinada liberal num momento de grande tensão política e econômica. No discurso de posse, Lee enfatizou a necessidade de “unidade nacional” e “recuperação econômica”, ao mesmo tempo em que apontou para uma diplomacia pragmática junto aos Estados Unidos e abertura de canais de diálogo com a Coreia do Norte. A seguir, apresenta-se uma análise detalhada dos desafios, das propostas centrais e das perspectivas para o novo governo.
Panorama político e econômico atual
Desde dezembro de 2024, quando o então presidente conservador Yoon Suk-yeol declarou lei marcial, a Coreia do Sul atravessa uma profunda crise institucional. A tentativa de cercear o Parlamento em nome do combate a supostas “forças antissistema” gerou protestos em massa e levou ao impeachment de Yoon em abril de 2025. O país ficou sem presidente durante pelo menos dois meses, até a convocação de eleições antecipadas — processo que desembocou na vitória de Lee Jae-myung e na expectativa de restaurar a estabilidade democrática.
No campo econômico, a nação sul-coreana sofreu com o aumento do custo de vida, reflexo da elevação global dos preços de energia e tensão nas cadeias de suprimentos. A imposição — ainda que suspensa — de tarifas americanas de até 25% sobre produtos eletrônicos e, mais recentemente, de 50% sobre aço e alumínio, comprometeu as exportações, responsáveis por cerca de 40% do PIB nacional. Além disso, o desemprego entre os jovens atingiu patamares preocupantes, pressionando o tecido social e contribuindo para a sensação de insegurança financeira nas camadas de baixa e média renda. Frente a esse quadro, o eleitorado optou por um candidato de perfil mais progressista, cujo discurso conciliatório contrastava com a divisão exacerbada dos últimos meses.
A vitória de Lee Jae-myung e sua agenda inicial
Lee Jae-myung já contava com trajetória política consolidada como ex-prefeito de Seongnam e ex-governador da província de Gyeonggi. Conhecido por políticas locais de renda básica e programas de assistência social, ele estreitou laços com a juventude urbana e a classe trabalhadora. Em sua campanha para 2025, Lee apostou em retórica pragmática ao afirmar que seu governo seria “pragmático e pró-mercado”, buscando conciliar estabilidade econômica com expansão dos direitos sociais.
No discurso de posse, Lee reafirmou o compromisso de superar as divisões ideológicas, prometendo criar um “comitê de reconciliação nacional” que inclua representantes de todos os partidos, sociedade civil e setores religiosos. O objetivo declarado é revisar procedimentos de emergência — para que situações como a declaração de lei marcial não se repitam — e promover fóruns regionais que deem voz a grupos marginalizados, como jovens desempregados e populações de áreas rurais.
Imediatamente após assumir, Lee indicou o deputado Kim Min-seok como primeiro-ministro. Kim, considerado um crítico ferrenho das ambições de lei marcial do governo anterior, carrega experiência em negociações legislativas e ganhou destaque durante as discussões de impeachment de Yoon. A escolha sinaliza a disposição de Lee de aliar pragmatismo político e afinidade ideológica, facilitando a tramitação de propostas no Parlamento, onde o Partido Democrático detém maioria relativa.
Propostas de política externa
Relações com os Estados Unidos
Ao reconhecer que a aliança com Washington permanece pilar de segurança e economia, Lee destacou a necessidade de renegociar tarifas que impactam as exportações sul-coreanas. Ele prometeu enviar uma missão de alto nível ao Departamento de Comércio dos EUA para reabrir negociações sobre as taxas de 25% sobre eletrônicos e impedir a aplicação das tarifas de 50% sobre aço e alumínio. O discurso enfatizou que “uma Coreia forte depende de mercados abertos e relações multilaterais equilibradas”, buscando preservar o acesso preferencial aos consumidores americanos sem abrir mão de interesses nacionais.
Além disso, Lee anunciou intenção de aprofundar a participação da Coreia do Sul em blocos como a Parceria Transpacífico (CPTPP), a fim de contrabalançar eventuais desvantagens na relação bilateral direta com os EUA. A meta é diversificar mercados para semicondutores e componentes eletrônicos, reduzindo a vulnerabilidade a decisões unilaterais de Washington.
Dialógica com a Coreia do Norte
Em seu discurso, Lee afirmou que “a verdadeira segurança é não necessitar de uma guerra”. Nesse viés, propôs reativar linhas diretas de comunicação militar, mantidas inativas desde 2021, para reduzir o risco de incidentes acidentais ao longo da Zona Desmilitarizada. Paralelamente, anunciou a intenção de promover projetos de cooperação transfronteiriça de baixo risco, como programas de intercâmbio cultural e iniciativas de pesquisa conjunta em áreas não sensíveis (meio ambiente, saúde pública).
O presidente também planeja organizar, possivelmente até o final de 2025, uma conferência trilateral em Seul envolvendo EUA, China e Japão, com o objetivo de discutir formalmente o fim do estado de cessar-fogo que vigora desde 1953. Essa iniciativa visa não apenas liquidar simbolicamente o status de guerra técnica entre as Coreias, mas criar mecanismos regionais de monitoramento para a desnuclearização pacífica da Península.
Equilíbrio com China e Japão
Lee ressaltou que será necessário “equilibrar interesses estratégicos” ao lidar com Pequim e Tóquio. No caso chinês, o risco é que um progresso nas negociações com o Norte seja interpretado como ganho de influência de Pequim sobre Pyongyang. Por isso, Lee defende uma política de “cooperação cautelosa”: ampliar acordos comerciais bilaterais (principalmente em tecnologia verde e manufatura avançada), mas sem comprometer a aliança de segurança liderada pelos EUA. Já em relação ao Japão, persistem temas sensíveis, como reparações históricas e disputas sobre as Ilhas Dokdo/Takeshima. Embora ele tenha mencionado a abertura para “resolver questões históricas com empatia”, Lee deixou claro que não haverá concessões unilaterais que violem a soberania nacional.
Prioridades domésticas e reformas estruturais
Recuperação econômica e custo de vida
Preocupado com a inflação sentida pelos consumidores, Lee anunciou a criação de um “Fundo de Estabilização Energético” para conter variações bruscas no preço da eletricidade e do gás natural, especialmente durante o inverno. Além disso, implementará subsídios direcionados para famílias de baixa e média renda, com ênfase em vouchers para alimentação escolar e desconto progressivo em tarifas de transporte público. Para incentivar a retomada do consumo interno, o governo prevê lançar um programa complementar ao “Vale Geral” — similar a iniciativas anteriores de vale-alimentação — com distribuição focalizada em regiões mais afetadas pela crise econômica.
Em paralelo, Lee destacou a necessidade de modernizar a economia sul-coreana. Seu governo priorizará investimentos em inteligência artificial, transição para energias renováveis (com metas de 30% da matriz energética até 2030) e fortalecimento da indústria cultural — setores que, segundo cálculos oficiais, podem gerar cerca de 200 mil empregos até o fim de 2026. Para tanto, será lançado um pacote de incentivos fiscais para startups de tecnologia verde e empresas de produção audiovisual, associando fundos públicos a linhas de crédito de bancos estatais.
Pequenas e médias empresas e mercado de trabalho
Reconhecendo que as PMEs representam mais de 90% das empresas formais e empregam quase dois terços da força de trabalho, o governo oferecerá linhas de financiamento com juros subsidiados, condicionadas à manutenção de empregos por, no mínimo, dois anos. Paralelamente, está em curso uma proposta de reforma trabalhista que inclui a flexibilização de alguns tipos de contratos temporários, mas sem reduzir direitos essenciais como seguridade social e férias remuneradas. Para enfrentar o desemprego juvenil, Lee anunciou parcerias com o setor privado para ampliar cursos de capacitação em programação, manufatura avançada e setores emergentes (robótica, biotecnologia), prevendo ainda um “programa de estágios remunerados” com subsídio governamental de até 50% do salário para participantes de instituições públicas e privadas.
Transparência e combate à corrupção
A fim de sanar dúvidas deixadas pelos escândalos políticos recentes, Lee prometeu aprovar uma “Lei de Transparência Eleitoral” que inclua:
- Fiscalização em tempo real de doações a campanhas, com divulgação imediata na internet;
- Auditorias independentes em todas as licitações públicas acima de 1 bilhão de wons, com relatórios trimestrais ao Congresso;
- Fortalecimento da independência da Procuradoria-Geral, extinguindo cargos comissionados que permitam ingerência política direta nas investigações.
Simultaneamente, estenderá plataformas de dados abertos para que organizações não governamentais e a imprensa acessem contratos, subvenções e execução orçamentária em tempo real — medida que, segundo especialistas, pode reduzir práticas lesivas ao erário em até 30%.
Perspectivas e riscos
Embora o Partido Democrático tenha conseguido maioria relativa no Parlamento, há expectativa de que grupos conservadores centristas e progressistas moderados formem frentes em pautas específicas, criando entraves em votações-chave, sobretudo em temas orçamentários e em reformas institucionais de longo prazo. Caso o governo não consiga reproduzir a unidade prometida no discurso de posse, poderá sofrer desgastes similares aos que levaram ao colapso do mandato anterior, obrigando Lee a negociar recuos em troca de apoio parlamentar.
No front externo, a maior incerteza está em como Washington responderá à postura sul-coreana de equilibrar pragmatismo econômico e abertura ao Norte. Se as negociações sobre tarifas arrastarem-se sem definição clara, analistas preveem impacto negativo nos mercados financeiros de Seul, já que investidores estrangeiros monitoram de perto o compromisso americano com a estabilidade do acesso aos semicondutores coreanos. Por outro lado, a reaproximação planejada com Pyongyang poderá ser vista como motivo de preocupação em Tóquio, abrindo fissuras temporárias na cooperação trilateral (Coreia do Sul-Japão-EUA), principalmente em setores de defesa antimísseis.
Em âmbito social, o sucesso das políticas de subsídio ao custo de vida depende da eficiência na alocação dos recursos, evitando fraudes e vazamentos de benefícios fora do público-alvo. Além disso, a capacidade de gerar postos de trabalho de qualidade em setores de alta tecnologia — e não apenas contratos temporários de baixa remuneração — será determinante para reduzir a sensação de precariedade, sobretudo entre a juventude urbana.
Conclusão
Lee Jae-myung assume num momento de tensão política e desafios econômicos significativos. Seu discurso de “unisão nacional” e plano de “governo pragmático pró-mercado” buscam reestabelecer confiança institucional, retomar o crescimento das exportações e implementar reformas sociais voltadas aos mais vulneráveis. A nomeação de Kim Min-seok como primeiro-ministro e o desenho de um ambicioso pacote de incentivos econômicos indicam determinação em avançar rapidamente com a agenda prometida. Ainda assim, a governabilidade dependerá de habilidade em costurar alianças no Legislativo e em equilibrar as demandas de aliados externos — sobretudo Estados Unidos, China e Japão — enquanto caminha para um possível diálogo mais profundo com a Coreia do Norte. Nos meses que se seguem, será possível avaliar se Lee consegue traduzir retórica em resultados tangíveis, cumprindo a promessa de “curar as feridas” e projetar a Coreia do Sul rumo a um período de estabilidade duradoura.
Faça um comentário