Senador filipino propõe arquivamento do processo de impeachment contra Sara Duterte

Vice-presidente das Filipinas, Sara Duterte, faz declaração após impeachment pela Câmara dos Deputados, Mandaluyong City, fevereiro de 2025.
Sara Duterte se pronuncia em seu escritório em Mandaluyong City, Metro Manila, após ser acusada de impeachment pela Câmara dos Deputados em 7 de fevereiro de 2025. (REUTERS/Eloisa Lopez)

Na primeira semana de junho de 2025, o senador Ronald dela Rosa, antigo chefe da polícia e aliado histórico da família Duterte, apresentou um rascunho de resolução ao Senado das Filipinas propondo o arquivamento definitivo do processo de impeachment contra a vice-presidente Sara Duterte. A iniciativa ocorre em um momento de intenso acirramento político entre as facções lideradas pela atual vice-presidente e pelo presidente Ferdinand Marcos Jr., pouco mais de três anos após a eleição que os elegeu em chapa única. Caso aprovada, a medida encerrará de forma automática a tramitação iniciada pela Câmara dos Deputados em fevereiro, reforçando a influência de Sara no cenário político e reconfigurando a disputa de poder em vista da eleição presidencial de 2028.

Histórico do processo de impeachment

Em 5 de fevereiro de 2025, a Câmara dos Deputados filipina aprovou a denúncia de impeachment contra Sara Duterte por ampla maioria, com o apoio de 215 dos 306 legisladores. Os artigos de impeachment imputavam à vice-presidente três acusações principais:

  1. Desvio de verbas públicas
    Alegava-se o uso indevido de fundos do orçamento enquanto ela ocupava simultaneamente os cargos de vice-presidente e secretária de Educação, entre 2022 e 2024.
  2. Enriquecimento ilícito
    Havia denúncias de que Sara acumulara patrimônio sem comprovação adequada, indicando possível acúmulo de bens incompatível com seus rendimentos oficiais.
  3. Ameaças à segurança do presidente e da cúpula do Legislativo
    Reportagens apontavam declarações em tom agressivo, nas quais a vice-presidente sugeriu, em determinado contexto, o emprego de força letal contra o presidente Marcos Jr., a primeira-dama Liza Araneta-Marcos e Martin Romualdez, atual presidente da Câmara dos Deputados.

Na ocasião, Sara Duterte negou veementemente todas as acusações, classificando o processo como motivado por divergências políticas e tentativa de retirá-la da corrida presidencial de 2028. Mesmo antes do início do julgamento, ela ingressou no Supremo Tribunal (Supreme Court) pedindo a anulação do processo, sob a alegação de “abuso de poder” por parte da Câmara ao acelerar o encaminhamento sem observar formalidades constitucionais — recurso que ainda não foi totalmente apreciado (supreme court petition, fevereiro de 2025).

Motivos e fundamentos da proposta de arquivamento

A resolução redigida por Ronald dela Rosa foi apresentada aos colegas senadores em 4 de junho de 2025. Seus principais argumentos são:

  • Decurso de prazo constitucional de 100 dias
    Pela Constituição filipina, o Senado deve instaurar o tribunal de julgamento assim que receber — pela presidência do Senado — os artigos de impeachment aprovados pela Câmara. Segundo o rascunho, a vice-presidente foi oficialmente notificada em meados de fevereiro, mas a Casa Alta só retornou ao plenário em 2 de junho, deixando mais de 100 dias sem que os senadores fossem empossados como jurados. O texto sustenta que, ultrapassado o prazo de 100 dias, o processo estaria automaticamente “de facto” arquivado.
  • Encerramento iminente da 19ª Legislatura
    O Senado está em seu último dia de sessão antes do recesso de meio de ano, marcado para a primeira quinzena de junho. Restaria tempo insuficiente para ouvir testemunhas, formar o tribunal de impeachment, receber as defesas e alcançar uma votação conclusiva. Como a próxima sessão plenária só se inicia no final de julho (20ª Legislatura), a resolução defende que o caso não pode “transitar” para o novo mandato, devendo ser considerado extinto.
  • Precedente legal e precedência nacional
    Dela Rosa argumenta que não consta na legislação nenhuma sanção explícita para o Senado que não instaure o julgamento dentro do prazo, mas que a prescrição tácita de 100 dias deveria ser interpretada de modo a proteger a estabilidade institucional. Ele também cita decisões de tribunais inferiores — ainda que sem caráter vinculante — que reconheceram o decurso de prazo como causa de arquivamento em processos administrativos análogos.

Panorama político: alianças, rachas e cálculo eleitoral

A disputa entre Sara Duterte e o presidente Ferdinand Marcos Jr. tem raízes em acordos de coalizão firmados em 2022, quando a imagem populista de Sara ajudou a compor a chapa com o herdeiro de um dos clãs mais relevantes do país. Contudo, a convivência política se deteriorou ao longo de 2024 e 2025 por divergências sobre prioridades legislativas, indicação de nomes para cargos-chave e estratégias de consolidação de poder a nível regional.

  • Força política de Sara Duterte nas eleições de meio de mandato (maio/2025)
    Em maio de 2025, aliados diretos de Sara conquistaram resultados expressivos em eleições regionais e para o Congresso, superando projeções iniciais. Esse desempenho catapultou o prestígio da vice-presidente, sinalizando que sua base segue sólida mesmo após o rompimento com a cúpula marquista. Para analistas políticos, o êxito eleitoral de maio reforça o argumento de que a tentativa de impeachment foi, em grande parte, reação a esse crescimento de influência.
  • Relação com o Partido Lakas–CMD
    O partido que sustenta Marcos Jr., Lakas–CMD, sofreu fissuras internas: parte dos deputados que votou pelo impeachment era tido como pertencente a alas moderadas ou dissidentes, contrárias à escalada da rivalidade com os Duterte. Assim, embora a presidência tenha tentado se distanciar publicamente do processo, o peso de lideranças regionais e parlamentares aliadas a Sara acabou pressionando pelo arquivamento.
  • Projetações para 2028
    Se o arquivamento for aprovado e Sara conseguir manter sua elegibilidade sem a sombra de uma condenação ou barramento político, sua projeção como candidata majoritária em 2028 fica fortalecida. Seu eleitorado reúne ultraconservadores que apoiam a “guerra contra as drogas” conduzida por seu pai, além de setores de centro-direita insatisfeitos com o governo Marcos Jr., especialmente no campo econômico e na agenda anticorrupção.

Implicações jurídicas e institucionais

Precedente para futuros processos de impeachment
Especialistas em Direito Constitucional alertam que reconhecer o arquivamento automático com base no decurso de prazo pode enfraquecer o mecanismo de impeachment como instrumento de freios e contrapesos. Diferentes juristas debatem se o prazo de 100 dias é “imperativo” (ou seja, fatal) ou apenas orientativo, cabendo ao Senado demonstrar que houve “motivos justificados” para eventual postergação. Caso o texto de Dela Rosa seja aprovado, talvez crie-se um precedente para que futuras acusações de crimes de responsabilidade percam ensejo por questões procedimentais.

Debate sobre quórum e votações específicas
Embora a redação da Constituição determine que o Senado seja o tribunal do impeachment, não há consenso sobre se um arquivamento liminar exige maioria simples ou qualificada. A base legal — comum a mecanismos parecidos em outras democracias parlamentares — sugere que qualquer decisão que resulte na clausura do processo deveria ter quórum supermajoritário, mas integrantes da maioria pró-Duterte defendem que bastaria o voto favorável da maioria simples dos presentes. Esse questionamento poderá ser resolvido apenas com parecer do Departamento de Assuntos Jurídicos do Senado ou, eventualmente, com recurso posterior ao Supremo Tribunal.

Controle externo e cobertura internacional
Organismos internacionais de monitoramento da boa governança acompanham atentamente o desfecho. A transferência de Rodrigo Duterte ao Tribunal Penal Internacional, em março de 2025, por supostos crimes contra a humanidade na “guerra às drogas”, já expôs fragilidades no sistema jurídico filipino. O arquivamento do processo contra Sara seria visto por alguns observadores como mais um indício de impunidade para membros do círculo familiar, comprometendo a reputação internacional do país em relação à transparência e ao combate à corrupção.

Desenvolvimento mais recente (junho de 2025)

Desde o anúncio do rascunho da resolução, o presidente do Senado, Francis Escudero, ratificou que “não existe nenhum impedimento constitucional em reconhecer a prescrição tácita do prazo de 100 dias, mas cabe ao plenário decidir se isso é legal e desejável do ponto de vista público”.Já o líder da minoria, Aquilino Pimentel III, afirmou que “transformar tecnicalidades em salvo-conduto para políticos acusados de corrupção enfraquece a democracia”.

Paralelamente, Sara Duterte protocolou uma petição suplementar junto ao Supremo Tribunal, pedindo que seja declarado, liminarmente, nulo qualquer debate em torno do mérito do impeachment, sob o argumento de que a Câmara, ao aprovar os artigos, teria cometido grave abuso de poder. O Supremo ainda não fixou data para julgar esse recurso.

No campo de protestos populares, movimentos de jovens e organizações da sociedade civil voltaram a se manifestar em Manila, em meados de maio, pedindo que o Senado assegure a “busca pela verdade” e evite “atalhos procedimentais” para proteger políticos de alta plumagem. Contudo, a reação foi menor do que a registrada em janeiro, quando mais de um milhão de pessoas — sobretudo membros da Igreja de Cristo — se reuniram contra a cassação de Sara Duterte.

Cenários possíveis e projeção para o segundo semestre de 2025

  1. Aprovação do arquivamento pelo Senado antes do recesso (junho)
    • Consequências imediatas: Sara retoma plenos poderes como vice-presidente, sem a ameaça de banimento político; sua base eleitoral tende a crescer, e sua articulação em nível nacional se intensifica.
    • Impacto sobre Marcos Jr.: enfraquecimento da coesão interna do partido Lakas–CMD; necessidade de negociações mais cuidadosas para aprovar indicações ministeriais e projetos de lei.
    • “Efeito cascata”: outros legisladores acusados de irregularidades podem tentar recorrer à mesma argumentação de prescrição, deslegitimando futuras ações de fiscalização legislativa.
  2. Rejeição do arquivamento ou postergação para o próximo mandato (20ª Legislatura a partir de agosto)
    • Efeito político: estendendo-se o impasse até o segundo semestre, o desgaste pode recair tanto sobre Sara quanto sobre setores do Partido Nacionalista Filipinas (agora opositor formal), que apoiam o impeachment. A indefinição jurídica atrasaria a consolidação de alianças para 2028.
    • Reforço à narrativa de “perseguição política”: caso o processo siga em curso, Sara e seus apoiadores podem usá-lo para mobilizar simpatizantes contra a “intimidação” da oposição, unindo ainda mais seus eleitores.
  3. Recurso ao Supremo Tribunal para decidir sobre prazo e quórum
    • Se o Senado apresentar entendimento dúbio sobre maioria exigida, o Supremo pode ser acionado para dar interpretação definitiva. Nesse cenário, a disputa se estende até decisões judiciais, tornando o tema judicializado em vez de político-legislativo.

Conclusão

A resolução de Ronald dela Rosa para arquivar o processo de impeachment contra Sara Duterte escancara a tensão entre a letra fria da Constituição e o jogo pragmático do poder. Na prática, trata-se de uma tentativa de construir uma “válvula de escape” para manter intacto o projeto político dos Duterte, que alia capilaridade popular e controle de bases regionais. Ao mesmo tempo, a reação que isso provoca — tanto internamente, em manifestações de rua, quanto externamente, em organismos de governança — revela o temor de que a impunidade institucional se consolide como norma.

O desfecho, previsto para depender de votações na semana final de junho ou, na pior hipótese, da interpretação do Supremo Tribunal, define não apenas o futuro imediato de Sara como vice-presidente, mas também os limites do exercício do impeachment nas Filipinas. Se, por um lado, a celeridade de procedimentos pode ser interpretada como falha institucional, por outro, a lentidão premeditada de um Senado controlado por interesses políticos também expõe a fragilidade do sistema de freios e contrapesos. Em última instância, a forma como esse capítulo se encerre terá impacto direto na governabilidade de Marcos Jr. no segundo semestre de 2025 e delineará o cenário eleitoral para 2028, quando Sara é vista como forte candidata ao Palácio Malacañang.

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