O Êxodo Sudanês: Análise da Maior Crise de Deslocamento em Curso

Mulher sudanesa refugiada fala com parente através de cerca próxima a abrigos improvisados em Adre, Chade.
Refugiada sudanesa que fugiu do conflito em Geneina, Darfur, conversa com parente por meio de uma cerca ao lado de abrigos temporários em Adre, Chade, agosto de 2023. Foto: REUTERS/Zohra Bensemra

Desde abril de 2023, o Sudão enfrenta uma guerra civil que já deslocou mais de 12 milhões de pessoas, entre refugiados e deslocados internos, configurando-se como a crise de deslocamento mais grave atualmente no mundo. À medida que a violência se prolonga — marcada por ataques sistemáticos a civis, destruição de infraestrutura e combates étnicos —, a região assiste a um crescente êxodo em direção aos países vizinhos. Organizações humanitárias alertam para um cenário de fome iminente, agravamento de doenças e colapso dos sistemas de proteção, em meio a apelos de financiamento que ainda não cobrem nem metade das necessidades básicas identificadas. Este artigo revisa o contexto do conflito, detalha os números mais recentes de deslocados, avalia as condições nos acampamentos, analisa os impactos regionais e globais, e aponta recomendações para conter o desastre humanitário.

Contexto do Conflito

O ponto de ruptura remonta a meados de abril de 2023, quando confrontos eclodiram entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF) e as Forças de Apoio Rápido (RSF), grupo paramilitar que até então integrava a coalizão militar do governo. Após meses de instabilidade política pós-queda de Omar al-Bashir em 2019, essa rivalidade escalou em todo o território, gerando combates intensos em Cartum, Darfur, Kordofão e outras províncias. Organizações de direitos humanos e a ONU documentam crimes de guerra — inclusive ataques aéreos contra áreas civis, execuções sumárias, violência sexual dirigida contra mulheres e crianças, e perseguição de grupos étnicos específicos. Em fevereiro de 2025, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (UNHCR) classificou o cenário como “a crise de deslocamento mais devastadora do mundo”, destacando o colapso quase total das redes de saúde, educação e segurança pública dentro do Sudão.

A Escala do Deslocamento

  • Refugiados Além-Fronteiras:
    Em 3 de junho de 2025, a UNHCR confirmou que mais de 4 milhões de sudaneses haviam cruzado as fronteiras em busca de refúgio, marca atingida em menos de dois anos de conflito. A maioria segue para países limítrofes, sobretudo Egito, Sudão do Sul, Chade, Etiópia, República Centro-Africana, Líbia e Eritreia.
  • Deslocados Internos (IDPs):
    Internamente, cerca de 8 milhões de pessoas já haviam sido forçadas a abandonar suas casas até o final de 2024. Dados de fevereiro de 2025 revelam que esse número subiu para 11,3 milhões, provocando uma pressão sem precedentes sobre abrigos provisórios e infraestrutura básica. Em conjunto, calcula-se que mais de 12 milhões de sudaneses estejam deslocados, o que corresponde a quase 25% da população total do país.
  • Crescimento Contínuo do Êxodo:
    Especialistas alertam que, caso a violência persista sem cessar-fogo, dezenas de milhares de pessoas poderão ainda deixar o território sudanês nas próximas semanas. A falta de mecanismos de proteção e a intensificação das ofensivas armadas em Darfur e Cartum ameaçam ampliar o êxodo a níveis ainda mais críticos.

Destinos e Capacidades de Acolhimento

  • Chade:
    Até junho de 2025, o Chade já registrava mais de 800.000 refugiados provenientes do Sudão, concentrados principalmente nas províncias de Wadi Fira e Ouaddaï, em campos como Zamzam e Goz Amer. Contudo, apenas 14% das necessidades de abrigo foram supridas, resultando em abrigos improvisados com lonas plásticas, galhos e cobertores insuficientes.
  • Egito:
    Como principal receptor, o Egito acolheu aproximadamente 1,2 milhão de sudaneses, oferecendo acesso a escolas e possibilidade de trabalho formal. Ainda assim, a infraestrutura local e o mercado imobiliário sofreram sobrecarga, gerando tensões sociais em áreas urbanas como Cairo e Alexandria.
  • Sudão do Sul:
    Embriagado por conflitos internos anteriores, o país tornou-se rota dupla: refugiados sudaneses cruzam para áreas remotas, enquanto sudaneses que haviam se refugiado lá retornam ao próprio território. Instituições da ONU e ONGs locais montaram abrigos improvisados em Aweil e Juba, mas a precariedade de estradas e a estação de chuvas limitam o acesso a ajuda humanitária.
  • Etiópia e Uganda:
    A Etiópia priorizou assentamentos integrados, reforçando serviços de saúde e educação para refugiados e comunidades anfitriãs. Já Uganda concedeu documentação de circulação para que os deslocados trabalhem e contribuam economicamente, aliviando parte da pressão sobre o sistema social local.

Condições Humanitárias nos Campos

  • Abrigo e Infraestrutura:
    Em Zamzam e Goz Amer, por exemplo, as barracas de lona resistem à estação chuvosa apenas com suportes improvisados. Em Chade, um relatório de novembro de 2024 mostrou que 52% das famílias viviam em abrigos construídos com materiais locais bancados pela própria comunidade, sem isolamento térmico nem privacidade mínima; no Egito, muitos residentes vivem em prédios degradados que não comportam a alta densidade populacional.
  • Água, Saneamento e Saúde:
    O acesso à água potável não chega a 50% do total de necessidades estimadas em vários campos no Chade e na Etiópia, dificultando a higienização diária. Esse déficit contribuiu para surtos de cólera e malária. Nos centros de saúde de Wadi Fira, há mais de 24 mil pacientes para cada médico, número muito acima do padrão mínimo de 10 mil pacientes por médico em situações de emergência.
  • Educação e Proteção:
    Mais de 80% das crianças refugiadas no Chade e no Sudão do Sul permanecem fora da escola desde o início do conflito. Faltam professores, materiais e infraestrutura para salas de aula. Em termos de proteção, relatórios da UNHCR indicam que 71% dos refugiados que chegaram ao Chade em outubro de 2024 haviam sofrido violência baseada em gênero, privações de liberdade e saques de bens, tornando a detecção precoce de traumas psicológicos uma demanda urgente

Relatos de Violência e Sofrimento

Testemunhos colhidos pela UNHCR e ONGs no terreno descrevem um quadro devastador:

  • Atrocidades em Darfur: Em abril de 2025, ataques coordenados contra o campo de deslocados de Abu Shouk, em El Fasher, resultaram em pelo menos 35 mortes de civis — predominantemente mulheres e crianças — e ferimentos graves em centenas de pessoas, conforme grupos de direitos humanos locais. Imagens de satélite confirmaram a destruição de clínicas, escolas e mercados, agravando o medo de novas evasões internas.
  • Histórias de Sobrevivência: Uma menina de sete anos relatou ter perdido a perna ao fugir de um bombardeio em Zamzam; seu pai, dois irmãos e, posteriormente, sua mãe, foram mortos em ataques distintos. Outro grupo revelou que combatentes confiscaram cavalos e burros, forçando famílias a empurrar carroças improvisadas com parentes feridos até a fronteira no Chade, numa jornada de mais de 100 km em terreno hostil.
  • Violência de Gênero e Exploração: Segundo dados de fevereiro de 2025, 60% das mulheres refugiadas no Egito relatam ter sofrido assédios ou agressões sexuais ao longo da rota de fuga, seja em postos de controle militares, seja por grupos criminosos que sequestram migrantes em áreas desprotegidas.

Escalada de Atrocidades em Darfur

Entre 10 e 12 de abril de 2025, a RSF lançou uma ofensiva massiva com apoio aéreo contra abrigos civis em Zamzam e Abu Shouk, dois dos maiores campos de despedidos em Darfur. Organizações de monitoramento confirmaram:

  • Uso de helicópteros de ataque e artilharia pesada contra perímetros civis.
  • Mínimo de 35 mortos e centenas de feridos, dos quais 70% eram crianças e mulheres.
  • Destruição de mais de 60% das infraestruturas (clínicas, escolas temporárias e áreas de saneamento), forçando reagrupamentos emergenciais em abrigos de campanha sem cobertura sanitária.
    Esse episódio intensificou o medo de que todas as zonas de abrigo em Darfur se tornem alvos, gerando uma nova onda de deslocamentos internos que se dirigem para regiões já sobrecarregadas, como Kordofão e Cartum.

Lacunas de Financiamento e Resposta Humanitária

  • Apelos Financeiros:
    Para 2025, o apelo humanitário para o Sudão e países vizinhos soma US$ 6 bilhões (incluindo planos de resposta a refugiados e deslocados internos), porém apenas 45% desse montante estava garantido até maio de 2025, segundo relatório da ONU. Em 2024, o Plano de Resposta do Chade foi financiado em apenas 30%, deixando lacunas críticas em abrigo, alimentação e saneamento.
  • Setores Prioritários Carentes:
    • Proteção: Atingiu 7% das metas mínimas, com equipes de PDI (Proteção de Pessoas Deslocadas Internamente) insuficientes para detectar violações de direitos humanos.
    • Educação: Somente 18% das metas foram alcançadas, faltando materiais pedagógicos e professores especializados.
    • Saúde: As atividades básicas — vacinação, kits de higiene, assistência obstétrica — atingiram 40% da necessidade, insuficientes para evitar surtos de malária, cólera e diarreias.
      ONGs e parceiros locais tentam preencher os vazios, mas ainda enfrentam escassez de combustível para geradores, falta de medicamentos e insegurança logística que limita corredores de ajuda.

Impactos Regionais e Globais

  • Pressão Sobre Países Vizinhos:
    • Chade: Um dos países mais pobres da região, agora lida com superlotação em campos e infraestrutura precária. Conflitos pontuais surgem entre refugiados e comunidades anfitriãs por água e terras para pasto.
    • Sudão do Sul: O afluxo agrava a instabilidade local, dado que muitos refugiados são etnicamente ligados a grupos de ambas as nações, reativando disputas territoriais e de pastoreio.
    • Egito: O setor de saúde público sente a sobrecarga de atendimentos, enquanto o mercado de trabalho informal vê uma oferta crescente de mão de obra, elevando tensões sociais em bairros periféricos.
  • Estabilidade Política e Segurança:
    A ONU alerta que a persistência do conflito pode fortalecer redes de recrutamento de grupos armados no Sahel e no Corno de África, ampliando rotas de tráfico de armas e pessoas. Economias locais correm risco de hiperinflação nos preços de alimentos básicos; a proximidade do Níger e da Líbia pode facilitar a passagem de combatentes e mercenários para conflitos em outras partes do continente, potencializando instabilidades.
  • Ameaça de Fome e Crise Sanitária:
    O Programa Mundial de Alimentos (WFP) projeta que, até o final de 2025, metade da população sudanesa — cerca de 25 milhões — estará em situação de insegurança alimentar grave. Dentro do Sudão, a combinação de bloqueios logísticos e escassez de combustível elevou o preço do trigo em 300% entre janeiro e maio de 2025, segundo o Observatório de Preços Alimentares da ONU.

Perspectivas e Recomendações

  1. Cessar-Fogo Imediato e Negociações Mediadas:
    • Convocar sessões urgentes sob a égide da União Africana e das Nações Unidas, com participação de representantes críticos de RSF e SAF, observadores internacionais e sociedade civil.
    • Garantir cessar-fogo em frentes de Darfur, Nilo Azul e Cartum, permitindo a entrada de ajuda humanitária sem interrupções.
  2. Corredores Humanitários e Logística Emergencial:
    • Instituir corredores terrestres e fluviais seguros para transporte de alimentos, medicamentos e água a regiões isoladas, principalmente Kordofão do Sul e Darfur.
    • Manter estoques de emergência em pontos estratégicos dos países vizinhos para reposição imediata aos acampamentos.
  3. Financiamento e Apoio Multissetorial:
    • Aumentar o compromisso financeiro internacional para atingir, no mínimo, 80% das necessidades previstas até dezembro de 2025.
    • Reforçar mecanismos de prestação de contas e transparência para que doadores acompanhem aplicação de fundos em tempo real.
  4. Proteção e Quebra de Ciclos de Violência:
    • Estabelecer equipes móveis de defesa de direitos humanos que monitorem abusos, investiguem denúncias e ofereçam assistência jurídica.
    • Desenvolver programas de apoio psicossocial para vítimas de violência de gênero e para crianças traumatizadas.
  5. Justiça Transicional e Responsabilização:
    • Apoiar a formação de um Tribunal Especial para julgar crimes de guerra e violência sistemática em Darfur e em Cartum.
    • Garantir coleta de provas, preservação de vestígios forenses e cooperação com cortes internacionais (como o TPI), visando desestimular novas atrocidades.
  6. Integração Socioeconômica dos Refugiados:
    • Ampliar iniciativas como a documentação de circulação concedida pela Etiópia e Uganda, permitindo que refugiados trabalhem, estudem e contribuam para economias locais.
    • Promover incentivos fiscais e linhas de microcrédito voltadas a empreendedores refugiados, fortalecendo a coesão social.

Conclusão

O êxodo sudanês, que já ultrapassa 12 milhões de deslocados, é o retrato de um colapso humanitário e de segurança sem precedentes na África. A combinação de combates intensos, violações de direitos humanos e lacunas de financiamento produziu uma crise multifacetada: econômica, sanitária, educativa e social. Caso os corredores humanitários não sejam estabelecidos e o apoio financeiro não seja drasticamente ampliado, o Sudão e toda a região correm risco de vivenciar danos ainda mais profundos — com desestabilizações a curto, médio e longo prazo. Somente uma resposta internacional coordenada, que combine diplomacia, ação humanitária e justiça, poderá interromper esse ciclo de violência e tentar reconstruir a frágil esperança de paz e dignidade para o povo sudanês.

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